O chavismo é feito, fundamentalmente, por homens e mulheres das classes populares que padeceram, sofreram rejeição e se rebelaram contra a democracia representativa. Se o sofrimento, o repúdio, a indiferença inclusive, supõem em princípio uma atitude passiva, a decisão mais ou menos expressa de manter-se à margem da política, a rebelião é um acontecimento político de primeira ordem. Inclusive antes de se reconhecer como tal, o chavismo se incorpora à política no ato de rebelar-se. É inconcebível sem esta memória coletiva, sem esta noção comum da rebelião: nela se confraternizam e politizam esses homens e mulheres, e nela têm seu batismo de fogo.
A incompreensão das condições históricas de emergência do chavismo como sujeito político conduz ao desconhecimento da natureza dos espaços onde se desenvolve. Em outras palavras, se não se compreende a singularidade do processo de politização do chavismo e, sobretudo, da cultura política que foi construindo com o passar dos anos, é impossível reconhecer a potencialidade de um espaço como o conselho comunal.
Chávez não promove a criação dos conselhos comunais para nivelar por baixo, mas para incorporar os de baixo, para garantir-lhes um espaço, um lugar. Não o faz, como se pretendeu, para domesticar o chavismo, para modelá-lo à imagem e semelhança do mesmo, mas porque o reconhece como o outro, como algo diferente, como um sujeito que aponta na direção da construção de outra política. Chávez sabe identificar no chavismo um espírito difícil de ser formado de maneiras mais tradicionais de participação política.
Esses espaços de construção política dos comuns são característicos de todo processo revolucionário. Assim como também é característica a tendência a controlá-los, tarefa que quase sempre empreendem as forças mais conservadoras e burocratizadas dentro das fileiras revolucionárias. Tratando-se de uma constante histórica, tal circunstância não teria por que ser motivo de escândalo, o que obviamente não significa que devamos renunciá-los. Mas ao contrário, o que corresponde a estar sempre prevenidos.
Não há forma mais eficaz de controlar esses espaços do que corrompê-los, desnaturalizá-los: tentar converter o povo organizado em clientela, líderes populares em gestores que, impossibilitados de gerir exitosamente as soluções dos problemas da comunidade diante da burocracia estatal, perdem toda a legitimidade. Convertidos em cenários de disputa entre grupos por cargos ou recursos, se produz o encerramento desses espaços: o povo começa a identificá-los como mais do mesmo e, no pior dos casos, se retira deles.
Mas nenhum dos fenômenos anteriores, expressões da velha cultura política, pode nos induzir a desconhecer a natureza do espaço: o propósito para o qual foi criado, o sujeito político para o qual foi concebido. A sobrevivência do velho não pode nos impedir de distinguir sua novidade radical.
Não há lugar no mundo onde o povo organizado possa fazer o que hoje faz através dos conselhos comunais. Sem a vitalidade que, contra todo obstáculo, ostenta uma significativa parte deles, seria impossível o salto qualitativo que experimentou o movimento comunitário, que hoje impulsiona com extraordinário vigor o Conselho Presidencial do Governo Comunal. Em parte importante de nossas Comunas, a despeito dos mais incrédulos, está estabelecido o desafio maiúsculo de produzir outra sociedade. É nossa maneira de viver o que está sendo posto em questão em muitos desses territórios. E essa audácia política é inconcebível sem uma vitalidade de origem, que é o que encontramos nos conselhos comunais.
A indispensável vitalidade dos espaços de participação é um tópico muito percorrido na extensa bibliografia sobre as revoluções populares. Assim, por exemplo, e para citar um texto clássico, em "A Revolução Russa", escrito em 1918, Rosa Luxemburgo questiona duramente a decisão dos bolcheviques de dissolver a Assembleia Constituinte de novembro de 1917: "o remédio que Trotsky e Lenin acharam, a eliminação da democracia em geral, é pior que a doença que se precisa curar: porque obstrui a fonte viva da qual poderiam emanar, e só dela, os corretivos de todas as insuficiências inerentes às instituições sociais. A vida política ativa, enérgica e sem travas das mais amplas massas populares".
Dez anos depois, Christian Rakovski escreve "Os perigos profissionais do poder", em que tenta desentranhar as razões do processo gradual de burocratização na União Soviética: "A burocracia dos sovietes e do partido constitui um fato de uma nova ordem. Não se trata de casos isolados, de falhas na conduta de algum camarada, mas de uma nova categoria social que deveria se dedicar todo um tratado". Revisando a experiência da Revolução Francesa, dá como uma das causas da letargia do processo revolucionário: "A eliminação gradual do princípio eleitoral e sua substituição pelo princípio das nomeações".
A bibliografia, como já dissemos, é muito extensa, e ela constitui parte substancial do acervo da humanidade. Não há melhor forma de preservá-lo do que dispor tempo para seu estudo, de maneira a ser capazes de corrigir erros que, anteriormente, também cometeram povos tão dignos e aguerridos como o nosso. Essa mesma bibliografia tende a coincidir em estabelecer que a crise terminal das revoluções populares tem relação direta com o fechamento dos espaços de participação popular e a ascensão de uma casta burocrática ou, para falar como John William Cooke, com o predomínio de um "estilo" burocrático.
Em "Peronismo e revolução", o argentino Cooke afirma: "O burocrático é um estilo no exercício das funções ou da influência. Logo, pressupõe operar com os mesmos valores que o adversário, ou seja, com uma visão reformista, superficial, antiética da revolucionária... A burocracia é centrista, cultiva um 'realismo' que passa a ser o colmo do pragmático... Então sua atividade está purificada desse sentido de criação próprio da política revolucionária, dessa projeção para o futuro que se busca em cada tática, em cada fato, em cada episódio, para que não se esgote em si mesmo. O burocrata quer que o regime caia, mas também quer durar; espera que a transição se cumpra sem que ele abandone o cargo ou posição. Se vê como o representante ou, às vezes, como o bem-feitor da massa, mas não como parte dela; sua política é uma sucessão de táticas que ele considera que somadas aritmeticamente e extendidas no tempo configuram uma estratégia".
Na Venezuela, preservar e estimular a vitalidade dos espaços de participação popular em geral, e dos conselhos comunais em particular, é condição de continuidade da revolução bolivariana. Para isso, é indispensável neutralizar o influxo conservador, burocratizante, presente em todo processo de mudanças revolucionárias.
Nosso partido tem a obrigação ética de contruir uma política clara em matéria de estímulo dos conselhos comunais, que contemple a sentença sem cautela de qualquer resquício de clientelismo. A luta contra o que no documento "Linhas estratégicas de ação política" se enuncia como "cultura política capitalista", deve passar das palavras aos fatos concretos, expressar-se em medidas simples. Esta "cultura política capitalista" deve ser apontada e combatida desde o mais alto nível. Nossa liderança deve erguer-se como uma referência ética. Nas bases, a crítica contra o clientelismo e outros vícios é realmente implacável. O povo chavista tem plena consciência do problema. Uma posição firme da liderança política contra esses vícios teria também um efeito moralizante.
Da mesma forma, nosso partido deve renunciar expressamente à pretensão de instrumentalizar os conselhos comunais, de administrar o espaço conforme sua conveniência. Antes de controlá-lo "a qualquer custo", concebê-lo como um espaço desde onde se constrói hegemonia popular e democrática. A administração mesquinha da força sem precedentes que Chávez construiu junto ao povo, é o contrário da política revolucionária. Esta será, como diria um camarada seguindo o mesmo Chávez, "a arte de convencer" que consegue se impor sobre "o costume de administrar". Não há política revolucionária sem compreensão de como se construiu essa força. Essa força que hoje sustenta a revolução bolivariana, que lhe serve de ponto de apoio, se construiu escutando o outro, o que pensa diferente, somando-o, incorporando-o. Uma força política incapaz de convencer perde o direito de se chamar força e entra assim em fase de decadência. A construção da hegemonia do chavismo foi um exercício literalmente democrático, popular, no sentido de que significou não só a incorporação das maiorias, mas da diversidade de pensamentos e demandas. Esta capacidade para a construção hegemônica supôs a derrota para a velha classe política, da mesma forma que deixar de cultivar "a arte de convencer" pode significar nossa ruína.
Estamos em tempo de nos comprometer a uma política militante orientada a recuperar, ali onde for necessário, e a defender, ali onde corresponda, os conselhos comunais como espaços onde impere, falando como Rosa Luxemburgo, "a vida política ativa, enérgica e sem travas" do povo venezuelano. Para isso, é fundamental reivindicar o que Rakovski identificava como "princípio eleitoral". Até 29 de agosto, 33,2% dos 43.198 conselhos comunais registrados tinham seus representantes com o mandato vencido. Nosso partido teria que promover, por todas as razões aqui expostas, e como uma de suas tarefas de primeira ordem, a renovação de representantes. Mas não basta com que todos os mandatos estejam vigentes.
Nosso esforço teria que estar orientado em converter os conselhos comunais em verdadeiras escolas de governo, onde os comuns se exercitem na prática de governo, para que aprendam a arte de governar. "Nenhuma classe veio ao mundo possuindo a arte de governar. Esta arte só se adquire pela experiência, graças aos erros cometidos, ou seja, extraindo as lições dos erros cometidos", escrevia Rakovski. Aprender a arte de governar não para que o povo se converta eventualmente em funcionário, mas para ir construindo outra institucionalidade. O militante revolucionário em exercício, por sua vez, teria que trabalhar para reduzir a brecha que separa as instituições do povo, numa luta sem trégua contra o "estilo" burocrático que destacava Cooke.
Os conselhos comunais não são nem muito menos devem ser o único espaço da revolução bolivariana. Mas são o espaço político por excelência. Um espaço que "não pode ser apêndice do partido", como alertara o comandante Chávez em 11 de junho de 2009. "Os conselhos comunais não podem ser apêndices dos governos municipais! Não podem ser, não devem ser, não se deixem. Os conselhos comunais, as Comunas, não podem ser apêndices de governos, nem do Ministério, nem do Ministério de Comunas, nem do Presidente Chávez nem de ninguém. São do povo, são criação das massas, são de vocês!"
Que assim seja.
Reinaldo Iturriza López é ministro do Poder Popular para as Comunas.