Foto de O Prólogo - Manchete anuncia fundação do Ipes.
O unilateralismo domina a cena. São entrevistados, única e exclusivamente, atores que manifestam clara oposição ao governo de Nicolás Maduro. Os enquadramentos noticiosos apoiam-se decididamente em imagens associadas ao caos, a descontentamentos e ao medo.
A respeito, a memória pode evocar com facilidade o perfil de abordagem que a mídia carioca, sobretudo as Organizações Globo, privilegiava no noticiário sobre os governos de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro (1983-1986 e 1991-1994). Semelhanças claras e de triste lembrança, em virtude do uso de contornos interpretativos criminalizantes, que visa(va)m causar repulsa no telespectador.
A série salienta uma crise de abastecimento e distribuição, sem qualquer menção ao boicote deliberadamente promovido por setores empresariais, que têm estocado gêneros de primeira necessidade no coirmão sul-americano. De forma descontextualizada, a reportagem enfatiza a promoção da “fome” no país.
Ironiza o antiamericanismo do governo venezuelano, concebido como uma maquiavélica atribuição de responsabilidade externa às mazelas do país. O fato de o governo dos Estados Unidos terem abertamente apoiado a tentativa de golpe sobre o ex-presidente Hugo Chávez, no remoto e dramático abril de 2002, é flagrantemente desconsiderado.
A Venezuela ser tratada como uma “ameaça à segurança” norte-americana, segundo declaração do presidente Barack Obama, também não estimula a Band a ponderar sobre eventuais razões do antiamericanismo bolivariano.
O país possui um governo ditatorial. Essa é a versão assinada pela série. Curioso, pois importantes inovações constitucionais introduzidas após a ascensão do chavismo à Presidência foram escanteadas.
Refiro-me à dilatação de mecanismos de participação democrática, ampliando a capacidade de ingerência das classes populares nos processos decisórios do Estado, por meio de conselhos comunitários, assim como a adoção do “recall”, ou seja, a possibilidade democrática e constitucional de supressão dos mandatos eletivos, em meio aos seus exercícios.
A série, não gratuitamente, começou a ser exibida após ter sido noticiado, pelo mesmo Jornal da Band, que o recém-eleito presidente argentino, Mauricio Macri, pretende requisitar aos países integrantes do Mercosul a expulsão da Venezuela do bloco. Uma discreta pressão noticiosa sobre a opinião pública e o governo brasileiros, que antecipou a natureza da série de reportagens.
Estas seguem longe de adotar parâmetros requisitados ao jornalismo, sobretudo quando realizado por um canal televisivo, que opera como concessão pública. A abertura de espaço a vozes e olhares diferentes não tiveram vez. Desprezaram o exercício básico da contextualização informativa, que pudesse permitir ao público-receptor dispor de recursos de compreensão e reflexão sobre os problemas noticiados.
A série "Venezuela no fundo do poço" em nada fica a dever às antigas peças de propaganda do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES). Um círculo de estudiosos, jornalistas e publicistas conservadores, que se dedicou à preparação de uma “guerra psicológica” contra as esquerdas, de modo geral, e o governo de João Goulart, em especial.
A satanização do “inimigo”, que ameaçava a “democracia” (sob controle do mercado) e as “liberdades individuais” (do proprietário): eixos desqualificatórios utilizados, ontem, pelo Ipes sobre o Brasil, como hoje, na reportagem da Band a respeito do país vizinho.
O Ipes foi patrocinado pelo capital nacional e internacional, tendo favorecido à instalação da ditadura em 1964, conforme o clássico estudo do historiador René Dreifuss. Em relação às fontes de financiamento, a Band não fica atrás, como de resto os demais conglomerados brasileiros de comunicação. Quem paga tem o poder de incidir no retrato do mundo.
A convergência entre a série de reportagens da Band com a velha propaganda do Ipes revela-se, também, no perfil do “mal” a ser exorcizado. Não encontrando corrente de esquerda similar no Brasil dos nossos dias, parece que o alvo se direciona a um “exemplo daninho” no continente. Uma experiência política, a bolivariana, a ser demonizada e expurgada de qualquer eventual inspiração em nosso país.
Uma esquerda que guarda não poucos traços de semelhança com as ideias e os valores defendidos pelas correntes trabalhista e comunista, do período em que atuou o Ipes. Particularmente sintonizados, o intervencionismo estatal, a primazia dada à participação popular nos processos decisórios e o anti-imperialismo.
A Venezuela de hoje é um espelho que reflete experiências e cosmovisões políticas que já alcançaram significativa expressão no Brasil. Nesse sentido, não bastou o golpe civil-militar de 1964. Não bastou o entreguismo de FHC, que deslocou os centros de poder decisório nacional para o exterior. Não basta o lastimável desaparecimento daquele perfil de esquerda no país. Busca-se, assim, um exemplar fora do Brasil, para o cotidiano “exorcismo” das ”assombrações" nacionalista, socialista e anti-imperialista.
Roberto Bitencourt da Silva – doutor em História (UFF), professor da FAETERJ-Rio/FAETEC e da SME-Rio. Blog do Roberto Bitencourt da Silva.
Saiba mais:
Brasil de Fato. “Ingerência dos EUA na América Latina é destaque na Cúpula dos Povos”, 10/04/2015.
Diário do Centro do Mundo. “As TVs da Venezuela são a favor ou contra o governo?”, 25/02/2014.
Gilberto Maringoni. “A Venezuela que se inventa”. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.
Rômulo Figueira Neves. “Cultura política e elementos de análise da política venezuelana”. Brasília: Funag, 2010.
Sobre o Ipes, vale assistir ao documentário “O Prólogo”, direção de Gabriel Marinho, 2013: