O disco é velho e toca sempre o mesmo: uma vez mais, o sistema judicial estado-unidense decidiu não julgar a polícia pelo estrangulamento de Garner, acusado postumamente de fugir aos impostos na venda de cigarros avulso.
Nos EUA, onde empresas multi-bilionárias como a General Electric, a Bristol-Meyers Squibb ou a Verizon são aplaudidas por não pagarem um dólar de impostos, a suspeita de vender cigarros não taxados serve de pretexto para matar um negro. Mas as mais de 500 000 pessoas que esta semana inundaram as ruas de todas as grandes cidades dos EUA não protestam apenas contra o racismo e a brutalidade policial. É o capitalismo estado-unidense que se senta no banco dos réus: se a América não acusa os assassinos do povo, o povo acusa a América. No maior movimento de massas que os EUA conheceram em mais de uma década, os trabalhadores estado-unidenses fazem suas as palavras de Eric Garner: também eles não conseguem respirar.
Foi-me contada uma vez por um antigo pantera negra, a história, antiga e verdadeira, dos escravos da tribo Igbo, que fugiram a pé da América por esse oceano Atlântico adentro, rumo à liberdade e ao continente a que foram roubados. Foi no ano de 1803: o latifundiário John Cooper tinha comprado por 100$ a peça o recheio humano de um negreiro vindo do que é hoje a Nigéria. Mas a caminho da plantação da Ilha de St. Simmons, ao largo do Estado da Geórgia, os escravos amotinaram-se e mataram os seus captores. Rodney King, capataz de uma plantação vizinha, registou o episódio: com a embarcação encalhada no paul sulista e cercados por caçadores de escravos a quem haviam prometido 10$ por cabeça, os Igbo saltaram para a água e, cantando em coro, caminharam em direcção a África até já não serem mais escravos; até não terem pé e já não poderem respirar. 211 anos depois, permanece o sufoco.
Racismo e falta de ar
O ar da América tornou-se irrespirável porque o racismo está profundamente institucionalizado e dele depende o funcionamento da economia: em comparação à população branca, a taxa de desemprego dos negros e o seu nível de pobreza são três vezes mais elevados; a taxa de encarceração é sete vezes superior; os afro-americanos vivem em média menos 10 anos que os brancos e são afectados pelo dobro da percentagem de abandono escolar. Segundo Gary Orfield e Erica Frankenberg, dois investigadores da Universidade da Califórnia-Los Angeles, as escolas dos EUA estão hoje mesmo mais segregadas que nos anos 60.
O modelo da plantação esclavagista sobrevive por obra destes números e o seu espectro não é tão etéreo como se possa pensar. É a própria Constituição dos EUA que autoriza a escravatura nos dias de hoje, curiosamente na mesma emenda que a proíbe. A 13.ª emenda é clara no único caso em que a escravatura é legal: como punição por um crime. Quem visite os EUA cedo se apercebe de como esta emenda constitucional serviu para perpetuar a plantação dentro das cadeias, autênticos armazéns de mão-de-obra desempregada. Com efeito, são já 135 000 os estado-unidenses encarcerados em prisões privadas, onde se trabalha por 1$/hora na indústria e na agricultura. Os donos destas prisões são, na acepção mais restrita da expressão, donos de escravos. Ferguson, onde a revolta começou, é o exemplo paradigmático desse complexo prisional: em 2013, a polícia emitiu 32 975 mandatos de detenção para uma cidade com apenas 21 135 habitantes.
A Mão Invisível que aperta e estrangula
Não é possível respirar na América porque a falta de ar transcende todas as esferas da vida humana. Os imigrantes ilegais ameaçados com deportações não podem respirar; as famílias endividadas e ameaçadas com despejos sentem-se sufocadas; os trabalhadores que recebem um salário mínimo insuficiente para sobreviver sentem-se asfixiados. O movimento de massas que se está a formar é de todos eles.
Na atmosfera democraticamente rarefeita dos EUA persiste a segregação legal, a discriminação institucional e o racismo estrutural. É uma doença que não se cura com panaceias verbais nem paliativos legais. O racismo (enquanto actual opressão sistémica) nasceu com o capitalismo e não poderá desaparecer enquanto um homem explorar outro homem. É preciso levar para a margem o negreiro encalhado dos Igbo, destruí-lo, e construir um navio novo. Porque, no fundo, a História da América é um disco riscado pelo racismo: pode dar todas as voltas do mundo, mas enquanto o sistema for este e o disco tocar o mesmo, a injustiça continuará a arranhar-nos os ouvidos, a cortar-nos a carne e a impedir-nos de respirar.
Fonte: Avante 2.141, 11.12.2014.