Segundo ele, "A Revolução de Outubro teve repercussões muito mais profundas e globais que a Revolução Francesa (1789) e produziu, de longe, o mais formidável movimento revolucionário organizado na história moderna".
Nenhum processo histórico gerou tamanho saldo organizativo, tão volumosa teoria e muito menos colocou tantos milhões de homens e mulheres em ação, em inúmeros países, dispostos a dar a até a própria vida pela transformação social.
A Revolução causou medo entre as classes dominantes, entre os ricos e os abastados de todo o planeta. O pânico gerou uma feroz reação. No plano material, desatou-se, durante décadas, uma ofensiva militar e repressiva contra tudo o que cheirasse a contestação à ordem estabelecida pelo regime do capital. Na esfera da disputa pelos corações e mentes, torrentes de mentiras fizeram brotar a indústria do anticomunismo em praticamente todos os países.
Realizada num país atrasado, em meio a um conflito bélico de largas proporções - a I Guerra Mundial - e num momento de crise do sistema imperialista mundial, a Revolução de 1917 teve repercussões em inúmeras áreas do conhecimento humano.
País agrário
Nas condições objetivas da Rússia de cem anos atrás, um marxista vulgar descartaria a possibilidade da eclosão de uma ruptura socialista. Aquele era, nas últimas décadas do século XIX, um imenso país agrário, com 85% de sua população vivendo no meio rural, em situação de extrema pobreza. Apenas 20% da população era alfabetizada.
A partir dos anos 1890, a indústria conheceu um razoável progresso, principalmente nas áreas de metalurgia, petróleo, tecelagem e carvão, graças a vultosos investimentos estrangeiros.
A atração de camponeses empobrecidos para as cidades deu origem a uma massa crescente de trabalhadores que adquiriam ao mesmo tempo qualificação técnica e consciência política.
Transformação Social
Mesmo assim, a classe operária era largamente minoritária para nuclear um projeto de transformação social. O país que, em tese, reuniria melhores condições para uma ruptura social era a Alemanha. Majoritariamente urbana, dotada de uma indústria moderna e possuidora de uma classe operária numerosa e experiente, a Alemanha vivia também as contradições de ter uma burguesia extremamente reacionária. O quadro foi agravado no curso da I Guerra Mundial (1914-1918).
No entanto, as crises do sistema imperialista, um regime despótico e corrupto e uma década de rebeliões populares acabaram por fazer do país dos czares o "elo débil" do capitalismo mundial.
Mas apenas tais condições não bastariam para deflagrar a Revolução. Nesta situação, adquire relevância um dirigente marxista inovador e criativo, capaz de traçar uma tática original, rumo à transformação social. O dirigente chamava-se Vladimir Lênin (1870-1924). Se alguém pode ser chamado de gênio na era contemporânea, este alguém é Lênin. Nenhum outro intelectual do século XX teve suas idéias tão disseminadas e apropriadas por tanta gente, como aquele russo de estatura mediana e olhar penetrante.
A originalidade de Lênin
Qual a originalidade de suas formulações? Entre muitas, podemos apontar duas principais.
A primeira foi divulgada em março de 1902, no livro "Que fazer?". Desenvolvendo as idéias de Marx e Engels, seu autor demonstra a necessidade da criação de uma teoria revolucionária e de um "partido de novo tipo" para organizar os trabalhadores. Disciplinado, baseado no centralismo democrático e composto por células horizontais e verticais, o partido funcionaria como um "intelectual coletivo" e um exército ágil e maleável para tempos de enfrentamento.
A segunda grande contribuição de Lênin foi a resolução de um intrincado problema tático. Se a classe que formaria a vanguarda revolucionária era a operária, como ela, minoritária na Rússia, daria conta da titânica tarefa de mudar a sociedade?
Apesar de minoritária, a ela caberia o papel de força motriz no processo. Para Lênin, ela teria de se unir a outros segmentos de oprimidos e explorados. O setor principal seriam as massas camponesas, saídas da servidão décadas antes. Lênin propõe, no livro "Duas táticas da social-democracia na revolução democrática" (1905), a aliança operário-camponesa. Seria uma união entre diferentes, para realizar uma tarefa comum: implodir o sistema que explorava a ambos.
Há sentido atualmente?
Qual o sentido de se debater a Revolução Russa hoje, além de se comemorar uma data redonda?
Aos que julgam anacrônica uma transformação social que teria se esgotado com a queda do muro de Berlim, em 1989, vale fazer um paralelo histórico.
Olhemos para outra Revolução, a Francesa, deflagrada mais de um século antes, em 1789. O impulso social por ela provocado colocou o Antigo Regime no chão e moldou a sociedade nos âmbitos da política, da economia e da cultura até os dias atuais.
Golpe de Estado
Se usássemos uma régua curta, poderíamos dizer que não foi bem assim. O regime construído a partir da queda da Bastilha chegou objetivamente ao fim dez anos depois, em 1799. Nesse ano, Napoleão Bonaparte deu o golpe de estado de 18 de brumário e instaurou uma férrea ditadura. Se nossa régua for mais elástica, veremos que em 1814, com a Restauração Monárquica, pouco restavam dos ideais revolucionários, além do sistema métrico decimal, adotado oficialmente em 1791.
Apesar disso, as conquistas da Revolução Francesa, em termos de liberdade, direitos humanos, separação de poderes etc. estão aí. Dizer que os impulsos da Revolução Socialista esgotaram-se em 1989 equivale a reutilizar aquela régua curta.
O capitalismo continua tão ou mais agressivo que há 95 anos. Seus rastros de destruição, insegurança, aumento da miséria, instabilidade e exploração seguem gerando conflitos sangrentos mundo afora. O imperialismo atual é muito mais danoso à humanidade do que jamais foi. Seu poder é muito maior.
Outubro de 1917 continuará a fazer sentido enquanto a humanidade quiser buscar outro mundo possível. Fará sentido enquanto as palavras de Vladimir Maiakovsky ainda tocarem o coração das pessoas: "Nesta vida/ Morrer não é difícil/ O difícil/ É a vida e seu ofício".
Gilberto Maringoni é jornalista e cartunista, doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de "A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez"