De todos os segredos de guerra, há um que é tão bem guardado que existe sobretudo como um rumor. É frequentemente negado pelo criminoso e sua vítima. Governos, agências humanitárias e ativistas de direitos humanos das Nações Unidas mal reconhecem sua possibilidade. Ainda assim, de vez em quando alguém reúne coragem para falar sobre isso. Foi isso que aconteceu numa tarde comum no escritório de uma gentil e cuidadosa conselheira em Kampala, Uganda. Eunice Owiny foi empregada pelo Projeto Legal de Refugiados (RLP) da Universidade de Markerere [maior instituição acadêmica de Uganda] para auxiliar pessoas desalojadas por toda a África a lidarem com seus traumas. Este caso em particular, entretanto, era um enigma. Uma cliente mulher estava com problemas maritais. "Meu marido não pode fazer sexo", ela se queixava. "Ele se sente muito mal com isso. Estou certa de que há algo que ele está escondendo de mim."
Owiny convidou o marido para entrar. Por algum tempo, eles não chegaram a lugar nenhum. Então Owiny pediu para que a esposa saísse da sala. O homem então murmurou misteriosamente: "Aconteceu comigo." Owiny franziu a testa. Ele colocou a mão no bolso e tirou de lá uma espécie de velho absorvente. "Eunice", ele falou, "Estou sentindo dor. Eu tenho que usar isso."
Deixando aquele absorvente coberto de pus na mesa à sua frente, ele contou seu segredo. Durando sua fuga da guerra civil no vizinho Congo, ele foi separado de sua esposa e capturado por rebeldes. Seus captores o estupraram, três vezes por dia, todos os dias, durante três anos. E ele não foi o único. Ele assistiu a homem após homem serem pegos e estuprados. Os ferimentos de um deles eram tão graves que ele morreu numa cela em frente à dele.
"Aquilo foi muito difícil de lidar para mim," Owiny me conta hoje. "Há certas coisas que você simplesmente não acredita que possam acontecer a um homem, você entende? Mas agora eu sei que violência sexual contra homens é um grande problema. Todos ouviram as histórias das mulheres. Mas ninguém ouviu as dos homens."
Não é apenas no Oeste da África que essas histórias permanecem desconhecidas. Uma das poucas pesquisadoras que lidou com o tema com alguma profundidade é Lara Stemple, do Projeto Legal em Saúde e Direitos Humanos da Universidade da Califórnia. O estudo dela chamado Male Rape and Human Rights [Estupro Masculino e Direitos Humanos, em tradução livre] observa incidentes de violência sexual com homens como uma arma em períodos de guerra ou de agressão política em países como Chile, Grécia, Croácia, Irã, Kuwait, a antiga União Soviética e a antiga Iugoslávia. Vinte e um por cento de homens do Sri Lanka que foram atendidos num centro de tratamento para torturados, em Londres, relataram abuso sexual enquanto estiveram presos. Em El Salvador, 76% dos prisioneiros políticos entrevistados nos anos 1980 descreveram pelo menos um incidente de tortura sexual. Um estudo com 6.000 detentos de um campo de concentração em Saravejo [capital da Bósnia] descobriu que 80% dos homens relataram terem sido estuprados.
Vim a Kampala para ouvir as histórias dos poucos homens corajosos que concordaram em falar comigo: uma rara oportunidade de apurar sobre um controverso e profundo tabu. Em Uganda, sobreviventes correm o risco de serem presos pela polícia, uma vez que estão mais suscetíveis a assumirem [os policiais] que estes homens são gays – um crime em Uganda e em outras 38 das 53 nações africanas. Eles provavelmente serão ostracizados pelos amigos, rejeitados pela família e ignorados pelas Nações Unidas e pela miríade de organizações não governamentais (ONGs) internacionais que estão equipadas, treinadas e prontas para ajudar mulheres. Esses homens estão feridos, isolados e em perigo. Nas palavras de Owiny: "Eles foram desprezados."
Entretanto, eles estão dispostos a falar, em grande parte graças ao diretor britânico do RLP, Dr. Chris Dolan. Dolan ouviu falar pela primeira vez em violência sexual contra homens em períodos de guerra no final dos anos 1990 enquanto pesquisava para sua tese de doutorado no norte de Uganda, e ele percebeu que o problema poderia estar dramaticamente subestimado. Interessado em ter uma compreensão mais ampla da profundidade e natureza do problema, ele colocou alguns cartazes por toda Kampala em junho de 2009 anunciado um "workshop" sobre o assunto numa escola local. No dia marcado, 150 homens apareceram. Numa explosão de sinceridade, um dos homens admitiu: "Isso aconteceu com todos nós aqui." Logo se tornou de conhecimento dos 200.000 refugiados ugandenses que o RLP estava ajudando homens que haviam sido estuprados durante conflitos. Lentamente, mais vítimas começaram a aparecer.
Encontrei Jean Paul no quente e empoeirado telhado do edifício do RLP em Old Kampala [região da capital]. Ele vestia uma camisa de botões vermelha e mantinha-se segurando o pescoço para baixo, seus olhos fixos no chão, como numa espécie de desculpas por sua impressionante altura. Ele tem o lábio superior mais proeminente que treme de forma contínua – uma condição nervosa que o faz parecer à beira das lágrimas.
Jean Paul estava na universidade no Congo, estudando engenharia eletrônica, quando seu pai – um empresário rico – foi acusado pelo exército de estar ajudando o inimigo e morto a tiros. Jean Paul fugiu em janeiro de 2009, para logo ser raptado por rebeldes. Junto de outros seis homens e seis mulheres, ele foi levado para uma floresta no Parque Nacional Virunga.
Mais tarde naquele dia, os rebeldes e seus prisioneiros encontraram-se com seus comparsas que estavam acampados na mata. Pequenas fogueiras podiam ser vistas aqui e ali entre as sombrias fileiras de árvores. Enquanto as mulheres foram colocadas para fora para preparar comida e café, 12 combatentes armados cercaram os homens. De seu lugar no chão, Jean Paul olhou para cima para ver o comandante inclinando-se entre eles. Com seus 50 anos, era careca, gordo e usava uniforme militar. Vestia uma bandana vermelha ao redor do pescoço e tinha pedaços de arbustos amarrados ao redor dos cotovelos.
"Vocês são todos espiões," disse o comandante. "Vou mostrar a vocês como punimos os espiões." Ele apontou para Jean Paul. "Tire suas roupas e fique posicionado como um homem muçulmano."
Jean Paul pensou que ele estivesse brincando. Ele balançou a cabeça e disse: "Eu não posso fazer essas coisas."
O comandante chamou um rebelde. Jean Paul podia ver que ele tinha apenas nove anos de idade. Foi dito ao menino, "Bata neste homem e tire as roupas dele." O garoto atacou Jean Paul com a coronha da arma. Finalmente, Jean Paul implorou: "Ok, ok. Eu tiro minhas roupas." Uma vez nu, dois rebeldes o seguraram numa posição ajoelhada com sua cabeça empurrada contra o chão.
Naquele momento, Jean Paul interrompeu o relato. A tremedeira em seu lábio superior era mais evidente do que nunca, ele baixou a cabeça um pouco e disse: "Sinto muito pelas coisas que vou dizer agora." O comandante colocou a mão esquerda na nuca de Jean Paul e usou a mão direita para bater em sua bunda "como num cavalo". Entoando uma canção de feiticeiro, e com todos assistindo, ele começou. No momento em que ele começou a estuprá-lo, Jean Paul vomitou.
Onze rebeldes aguardavam numa fila e estupraram Jean Paul. Quando ele estava muito exausto para se manter [naquela posição], o próximo agressor envolvia o braço ao redor do quadril de Jean Paul e o levantava pelo estômago. Ele sangrava sem parar: "Muito, muito, muito sangramento," ele diz, "Eu podia sentir como se fosse água." Cada um dos homens prisioneiros foi estuprado 11 vezes aquela noite e em todas as noites que se seguiram.
No nono dia, eles estavam procurando por lenha quando Jean Paul viu uma enorme árvore com raízes que formavam uma pequena gruta. Agarrando aquele momento único, ele rastejou para dentro dela e ficou assistindo, trêmulo, aos rebeldes procurando por ele. Depois de cinco horas observando as pegadas dos soldados enquanto eles o procuravam, Jean Paul ouviu o plano deles: eles iriam disparar um rajada de tiros e dizer ao comandante que Jean havia sido morto. Finalmente ele saiu do esconderijo, fraco após seu calvário e pela dieta de apenas duas bananas por dia durante sua captura. Vestido apenas de cueca, ele rastejou pelo matagal "lenta, lenta, lenta, lentamente, como uma cobra" até a cidade.
Hoje, apesar do tratamento hospitalar, Jean Paul ainda sangra quando caminha. Como muitas vítimas, seus ferimentos são tão graves que ele deveria restringir sua dieta a alimentos leves como bananas, as quais são caras, e Jean Paul pode pagar apenas por milho e painço [tipo de cereal]. Seu irmão seguidamente pergunta o que há de errado com ele. "Não quero contar a ele," diz Jean Paul. "Temo que ele vá dizer: 'Agora meu irmão não é um homem.'"
É por esta razão que tanto agressor quanto vítima entram numa conspiração de silêncio e o motivo por que homens sobreviventes frequentemente descobrem, uma vez que suas histórias são descobertas, que perderam o apoio e o conforto daqueles que os cercam. Nas sociedades patriarcais que existem em muitos países em desenvolvimento, papéis de gênero estão rigidamente definidos.
"Na África, a nenhum homem é permitido ser vulnerável," diz a funcionária do RLP que lida com questões de gênero, Salome Atim. "Você tem que ser masculino, forte. Você nunca deve desmoronar ou chorar. Um homem deve ser um líder e provedor para a família toda. Quando ele falha em alcançar este padrão, a sociedade entende que há algo errado."
Às vezes, afirma ela, esposas que descobrem que seus maridos foram estuprados decidem abandoná-los. "Elas me perguntam: 'Agora como que vou viver com ele? Como o quê? Isso ainda é um marido? É uma esposa?' Elas perguntam, 'Se ele pode ser estuprado, quem está me protegendo?' Há uma família com a qual estou lidando de perto em que o marido foi estuprado duas vezes. Quando a esposa descobriu, ela foi para casa, embrulhou suas coisas, pegou as crianças e foi embora. Claro que aquilo destruiu com os sentimentos daquele homem."
De volta ao prédio do RLP, fico sabendo sobre as outras formas de sofrimento infligidas àqueles homens. Eles não são apenas estuprados, são forçados a penetrar buracos em bananeiras em que corre seiva ácida, a sentar com seus genitais numa fogueira, a arrastar pedras amarradas a seus pênis, a fazer sexo oral a filas de soldados, à penetração com chaves de fenda e pedaços de pau. Atim já viu tantos sobreviventes que, com frequência, ela pode apontá-los no momento em que se sentam. "Eles tendem a se inclinar para a frente e geralmente vão sentar sobre uma das nádegas," ela me relata. "Quando tossem, eles seguram suas partes inferiores. Algumas vezes, haverá sangue na cadeira quando eles se levantarem. E com frequência eles têm um odor característico."
Porque há tão pouca pesquisa sobre estupro masculino em períodos de guerra, não é possível afirmar com alguma certeza por que isso ocorre ou mesmo quão frequente é – ainda que uma rara pesquisa de 2010, publicada no Journal of American Medical Association, tenha encontrado que 22% dos homens e 30% das mulheres no leste do Congo relataram violência sexual decorrente de conflitos. Conforme afirma Atim: "Nosso pessoal está sobrecarregado com os casos que temos, mas em termos de números reais? Esta é a ponta do iceberg."
Mais tarde conversei com a Dr. Angella Ntinda, que lida com encaminhamentos do RLP. Ela me diz: "Oito de dez pacientes do RLP vão falar sobre algum tipo de abuso sexual."
"Oito em cada dez homens?", esclareço.
"Não. Homens e mulheres," ela diz.
"E quanto aos homens?"
"Creio que todos eles."
Eu estou horrorizada.
"Todos eles?" eu pergunto.
"Sim," ela afirma. "Todos eles."
A pesquisa de Lara Stemple na Universidade da Califórnia não mostra apenas que a violência sexual contra homens é um componente das guerras pelo mundo todo, ela também sugere que as organizações humanitárias internacionais estão falhando com vítimas do sexo masculino. O estudo dela cita uma revisão de 4.076 ONGs que lidaram com violência sexual em períodos de guerra. Apenas 3% delas mencionaram as experiências dos homens em sua literatura. "Tipicamente," Stemple afirma, "com uma passagem curta de referência."
Na minha última noite, fui à casa de Chris Dolan. Estávamos no topo de uma montanha, vendo o sol se pôr nas redondezas de Salama Road e Luwafu, com o lago Victoria ao longe. À medida que o céu foi passando do azul para o lilás e para o preto, uma miríade confusa de luzes brancas, verdes e laranjas cintilavam; pontinhos de luz de um acidente distante no vale apareciam. Um burburinho magnífico vinha disso tudo. Bebês chorando, crianças jogando, cigarras, galinhas, pássaros, vacas, televisores e, sobressaindo-se sobre tudo isso, um chamado para orar numa mesquita distante.
As descobertas de Stemple sobre o fracasso das agências humanitárias não é surpresa para Dolan. "As organizações trabalhando com violência sexual e de gênero não falam sobre isso", ele afirma. "É sistematicamente silenciado. Se você for muito, muito sortudo eles darão a isso uma menção tangencial no final do relatório. Você deve conseguir cinco segundos de: 'Ah, e homens também podem ser vítimas de violência sexual.' Mas não há quaisquer dados, nenhuma discussão."
Como parte de um esforço em corrigir isso, o RLP produziu um documentário, em 2010, chamado Gender Against Men [O Gênero Contra os Homens, em tradução livre]. Quando ele foi exibido, Dolan disse que tentativas de impedi-lo foram feitas. "Essas tentativas foram feitas por pessoas bem conhecidas, agências humanitárias internacionais?" eu questiono.
"Sim," ele responde. "Há um temor entre eles de que este é um jogo de soma-zero; de que há um bolo pré-definido e se você começar a falar sobre homens, você irá de algum modo comer um naco deste bolo que eles levaram bastante tempo para assar." Dolan comenta sobre um relatório de 2006 das Nações Unidas que se seguiu a uma conferência internacional sobre violência sexual nesta área do leste africano.
"Eu sei de fato que as pessoas por trás do relatório insistiram para que a definição de estupro fosse restrita a mulheres," ele afirma, completando que um dos doadores do RLP, Dutch Oxfam, recusou-se a fornecer qualquer outra doação a menos que ele [Dolan] prometesse que 70% dos clientes fossem mulheres. Ele também se recorda de homem cujo caso era "particularmente grave" e que foi designado para a agência de refugiados da ONU, a UNHCR. "Eles o disseram: 'Nós temos um programa para mulheres vulneráveis, mas não para homens.'"
Isso me lembra de uma cena descrita por Eunice Owiny: "Há um casal", ela conta, "O homem foi estuprado, a mulher foi estuprada. A divulgação é fácil para a mulher. Ela recebe o tratamento médico, ganha atenção, é apoiada por diversas organizações. Mas o homem está isolado, morrendo."
"Em resumo, é exatamente isso que ocorre," Dolan confirma. "Parte do ativismo em torno dos direitos das mulheres é: 'Vamos provar que mulheres são tão boas quanto os homens.' Mas o outro lado disso é que você deveria olhar para o fato de que homens podem ser fracos e vulneráveis."
Margot Wallström, a representante especial para violência sexual em conflitos do Secretário-Geral da ONU, insiste em uma declaração que a UNHCR estende seus serviços para refugiados de ambos os gêneros. Mas ela reconhece que o "grande estigma" que homens enfrentam indica que o número real de sobreviventes é maior do que o reportado. Wallström diz que o foco permanece nas mulheres porque elas são "a esmagadora maioria" das vítimas. Ainda assim, ela complementa, "nós de fato sabemos de muitos casos de homens e meninos sendo estuprados."
Mas quando contato Stemple por e-mail, ela relata "uma constante tecla batida em que mulheres são as vítimas de estupro" e um ambiente em que homens são tratados como uma "classe agressora monolítica".
"Leis internacionais de direitos humanos deixam os homens de lado em praticamente todos os instrumentos elaborados para tratar de violência sexual", ela prossegue. "A Resolução 1.325 do Conselho de Segurança da ONU, em 2000, trata violência sexual em tempos de guerra como algo que impacta apenas mulheres e meninas... A Secretária de Estado Hillary Clinton recentemente anunciou 44 milhões de dólares para implementar esta resolução. Por causa de seu foco inteiramente em vítimas mulheres, parece improvável que qualquer parte destes fundos vá atingir os milhares de homens e meninos que sofrem deste tipo de abuso. Ignorar o estupro masculino não só negligencia os homens, também fere as mulheres ao reforçar um ponto de vista que iguala 'mulher' com 'vítima', assim dificultando nossa capacidade de ver mulheres como fortes e empoderadas. Num mesmo sentido, o silêncio sobre vítimas homens reforça expectativas deletérias sobre homens e sua suposta invulnerabilidade."
Considerando-se a conclusão de Dolan de que "o estupro de mulheres é significativamente sub-reportado e que o de homens quase nunca é reportado", eu pergunto a Stemple se, baseando-se em sua pesquisa, ela acredita que isso seja uma parte até agora inimaginável de todas as guerras. "Ninguém sabe, mas eu realmente acho que é seguro dizer que é provável que isso tenha sido parte de muitas guerras ao longo da história e o tabu tenha desempenhado uma parte neste silêncio."
Enquanto deixo Uganda, há um detalhe de uma história que não consigo esquecer. Antes de receber ajuda do RLP, um homem foi ver seu médico local. Ele contou ao médico que foi estuprado quatro vezes, que estava ferido e depressivo e que sua mulher havia ameaçado deixá-lo. O médico deu a ele Paracetamol.
Os nomes dos sobreviventes foram modificados e suas identidades ocultados para a proteção deles. O Projeto Legal de Refugiados (RLP) é uma organização parceira da Christian Aid (christianaid.org.uk).
Imagem: Morrendo pela vergonha: uma vítima de estupro do Congo, atualmente vivendo em Uganda. A esposa deste homem o abandonou, pois ela não podia aceitar o que havia acontecido. Ele tentou cometer suicídio no final de 2010.
Tradução: Luiz Henrique Coletto/Bule Voador.