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130413 alassad2Síria - Redecastorphoto - Na última sexta-feira (5), o presidente sírio Bahar al-Assad concedeu uma entrevista à emissora de televisão turca Ulusal Kanal, em que falou sobre a agressão que seu país vem sofrendo há dois anos por parte de bandos armados e terroristas.


Al-Assad também falou do atual estado de relações com a Turquia, antiga aliada do país que mudou sua rota e hoje é um dos principais fornecedores de suprimentos aos terroristas e bandos armados que operam no país árabe, prestando favor a potências regionais como a Arábia Saudita e o Catar, além de se subordinar aos interesses imperialistas dos Estados Unidos no Oriente Médio.

Ulusal Kanal (1): Senhor presidente, obrigado por nos receber. Minha primeira pergunta pode soar um pouco estranha, mas tenho de perguntar. O senhor pode confirmar, por favor, que está vivo e não deixou a Síria?
Bashar al-Assad, presidente da Síria: Em primeiro lugar, meus votos de boas vindas à Síria, a você e sua equipe. É um prazer para mim falar com vocês hoje. E, através de vocês, também com o povo da Turquia. Você pode ver que estou aqui, plenamente em campo. Não estou escondido num subterrâneo, como chegaram a dizer. São mentiras que se divulgam, de tempos em tempos, para abater o moral do povo sírio, que eu estaria vivendo no Irã, ou num navio de guerra. Vocês podem ver que estou aqui, na Síria, é claro.

Ulusal Kanal (2): Como o senhor sabe, em recente reunião da Liga Árabe, a cadeira que cabe à representação da Síria foi dada à oposição, o que abriu uma discussão sobre a sua legitimidade. Significará que a Liga Árabe retirou sua legitimidade, ao admitir o voto da oposição e pelo fato de que o senhor já não tem representação na Liga Árabe?
Falando bem francamente, a Liga Árabe, essa sim, não tem qualquer legitimidade. É organização que representa estados árabes, não os povos árabes. E não tem qualquer legitimidade já há muitos anos, pelo fato evidente de que os estados lá representados não manifestam a vontade do povo daqueles estados. Mesmo quando a Síria ainda participava da Liga Árabe, já sabíamos disso. Portanto, a Liga Árabe absolutamente não está em posição de “dar” ou “retirar” legitimidade a seja quem for ou a seja que país for.

Além disso, o movimento que se viu na Liga Árabe não passou de jogo de cena, um movimento apenas simbólico, para gerar uma ilusão de legitimidade. Nenhuma legitimidade brota de participar ou não participar de organizações políticas, internacionais ou quaisquer outras, nem nasce por doação de alguma nação estrangeira. Na Síria, só o povo sírio é fonte de legitimidade. E só isso nos interessa. O resto não nos diz respeito, nem nos interessa.

Ulusal Kanal (1): Há medidas, decisões, ações empreendidas contra seu país por alguns países árabes e também por países ocidentais. Por outro lado, os países Brics, que são observadores da situação síria, tomaram decisões diferentes das que foram tomadas pelos países árabes e outros países ocidentais. Como o senhor avalia as atitudes e posições tomadas pelos países Brics?
Sua pergunta chama a atenção para um ponto importante. Para começar, o conflito na Síria não é conflito local, doméstico. Há ativadas dinâmicas externas à Síria, a maioria das quais visam a redesenhar o mapa dessa região. E há na questão síria uma disputa, também, de interesses conflitantes das grandes potências. A criação do bloco de países chamado Brics implica que os EUA já não são a única potência no mundo. Hoje, já é impossível ignorar os interesses difusos de outras forças, quando se tomam decisões na arena internacional.

Os países do grupo Brics não apoiam o presidente Bashar al-Assad ou o estado sírio: eles apoiam a estabilidade nessa região. Todos sabem que a agitação na Síria cria o risco de que forças terroristas assumam o controle na região. Todos sabem que, se o conflito em que a Síria foi jogada alcançar o ponto de rachar o país, ou se forças terroristas conseguirem chegar a controlar a Síria, ou no caso de que aconteçam as duas coisas, o que acontecer aqui imediatamente contagiará primeiro os países vizinhos, depois, por efeito dominó, chegará a países em todo o Oriente Médio.

Nesse quadro, os países do grupo Brics apoiam uma solução política para a Síria, contra as demais potências ocidentais.

Se se consideram outros líderes árabes que se posicionaram contra a Síria, sabe-se que não são independentes, em termos políticos, daquelas mesmas potências ocidentais. São líderes que agem conforme o diktat daquelas potências ocidentais. Internamente, pessoalmente, é possível que também apoiem uma solução política. Mas quando o ocidente lhes dá ordens, são obrigados a obedecer. Em termos bem gerais, essa é a situação, na região e no plano internacional.

Ulusal Kanal(2): Nos dois últimos anos, temos assistido aos conflitos sobre a Síria e dentro da Síria. Esses conflitos são apoiados, por um lado, pelos EUA, França, Turquia e alguns regimes do Golfo. Esses regimes dizem que os grupos dentro da Síria combatem contra o seu governo. E mais de cem países declararam que o senhor deve deixar o governo. Isso posto, o senhor considera a possibilidade de deixar o governo e permitir que outro nome o substitua?
Sua pergunta implica que um grande número de países ocidentais, e nossos aliados, inclusive a Turquia, e muitos países árabes estariam contra essa presidência. Ao mesmo tempo, sua pergunta implica também [que os grupos internos] também estariam contra essa presidência. Nada disso explica que a Síria se tenha mantido firme, já há três anos. Não me incomoda que haja oposição ao meu governo. Sou presidente eleito pelo povo sírio. Disso se conclui que o presidente ficar na presidência ou deixar a presidência é uma grave decisão nacional, a ser tomada, exclusivamente, pelo povo sírio, não por outros estados que digam que desejam que a presidência fique ou saia. Sejamos francos. Será que todos esses estados estão preocupados com a Síria ou com o sangue do povo sírio?

A começar pelos EUA, que apoiam há décadas os crimes cometidos por Israel, desde que Israel foi criada em nossa região. Os EUA cometeram massacres no Afeganistão e no Iraque, que resultaram em milhões de mortos, feridos e mutilados. A França e a Grã-Bretanha cometeram massacres na Líbia, sempre com o apoio dos EUA. O atual governo turco está metido até os joelhos em sangue sírio. Volto a perguntar: quais desses estados estão preocupados com o sangue dos sírios?

A questão de se o presidente fica ou sai, é decisão que cabe ao povo sírio. Nenhum país do mundo tem qualquer coisa a ver com isso.

Ulusal Kanal (1): O senhor disse que o que está acontecendo na Síria é efeito de apoio que vem do exterior. Mas estamos em Damasco e se ouve o som de explosões e o som dos bombardeios, em diferentes distâncias nunca param. Por que isso tudo está acontecendo?
A Síria está cercada por países que estão ajudando terroristas a entrar em território sírio. Claro. Nem todos os países fazem intencionalmente e sabendo o que fazem. Por exemplo, o Iraque é contra esse movimento de infiltrar terroristas em território sírio, mas há circunstâncias que impedem que o estado tenha pleno controle de todas as fronteiras. No Líbano, a situação é de divisão: alguns partidos apoiam e outros se opõem à política de mandar terroristas para dentro do território sírio. A Turquia apoia e hospeda terroristas em termos oficiais e os está mandando para território sírio. Alguns grupos terroristas entram na Síria pela Jordânia e não se sabe ainda se com ou sem o apoio do governo jordaniano. Enquanto perdurar essa ação de contrabandear terroristas e armas para dentro do território sírio, nós continuaremos a lhes dar combate. É normal. É guerra, em qualquer sentido da palavra. Não há como separar os diferentes incidentes de segurança. Só é possível que terroristas continuem a entrar em território sírio, aos milhares, talvez dezenas de milhares – é difícil quantificar com precisão – se recebem apoio externo. E estão chegando de várias direções. Por isso há combates em várias regiões do país.

Ulusal Kanal(2): Senhor presidente, o senhor disse que o governo turco apoia oficial e publicamente grupos terroristas, garantindo diferentes tipos de ajuda e apoio àqueles grupos terroristas. Mas sabe-se que, até bem recentemente, havia relações amigáveis entre Erdogan, o governo turco e o senhor. O que aconteceu, que mudou tanto essa situação?
É possível que Erdogan tenha visto, nos eventos em curso no mundo árabe, uma oportunidade para prolongar a própria vida política. É a mesma mentalidade da Fraternidade Muçulmana. Nossa experiência, na Síria, com a Fraternidade Muçulmana, ao longo de 30 anos, ensina que são um grupo de oportunistas. Usam a religião para obter vantagens pessoais. Ele [Erdogan] viu que em todos os países onde houve revoluções, ou golpes de Estado, ou intervenção estrangeira, a Fraternidade Muçulmana está hoje no poder. Erdogan viu, nisso, uma grande oportunidade para permanecer no poder, sob diferentes formas, ainda por muitos e muitos anos. Virou-se contra a Síria, porque viu aqui uma boa oportunidade para manter-se no poder. De início, tentou interferir em assuntos internos da Síria.

Já antes da crise, Erdogan estava mais interessado na Fraternidade Muçulmana, do que nas relações entre Síria e Turquia, muito mais do que no destino da Síria.

Esse pessoal pensa dessa forma. Dadas algumas circunstâncias, eles sempre pensam, primeiro, nos próprios interesses pessoais. Como já disse, Erdogan tentou, primeiro, interferir em assuntos internos da Síria. E depois o governo turco começou a apoiar publicamente vários grupos terroristas dentro da Síria. Hoje, estão muito profundamente envolvidos no derramamento de sangue dentro da Síria. Nesse contexto, as nossas relações deterioraram-se muito gravemente.

Ulusal Kanal (1): Perguntamos ao senhor Erdogan sobre as relações sírio-turcas. Ele diz que foi franco com o senhor e lhe fez várias propostas sobre reformas, que o senhor rejeitou. Por que o senhor não considerou as propostas que lhe foram feitas pelo senhor Erdogan?
Infelizmente, Erdogan não disse uma palavra franca e confiável desde que essa crise começou. Nenhuma. E não estou exagerando. As propostas eram muito gerais. Eu disse a ele que só o povo sírio decidiria quem seria presidente e que sistema de governo teríamos. Já comentei as propostas de Erdogan, com muitos detalhes, em vários pronunciamentos. Temos de preparar eleições, nas quais os vários grupos políticos apresentem candidatos. E assim decidiremos qual a melhor via para prosseguir. Por melhores e mais importantes que fossem as propostas de Erdogan, em nenhum caso seriam mais importantes ou melhores que eleições livres para saber o que o povo quer. O que poderia ser melhor que essa solução? Haverá eleições, e o que o povo decidir será implementado.

Mas há uma pergunta simples, que vocês deveriam fazer. Se Erdogan continua a dizer que suas propostas teriam resolvido todos os problemas na Síria, que relações haveria entre aquelas propostas que eu ouvi e o apoio que ele dá hoje a grupos terroristas? Hoje, nesse momento, Erdogan está recrutando, entregando armas, dando dinheiro, garantindo equipamento médico e outros detalhes de apoio logístico. E abriu a fronteira para que esses grupos entrem na Síria. O que isso tudo teria a ver com as propostas de Erdogan, que, sim, ouvi atentamente?

Erdogan sabe que, desde o primeiro dia, nós sempre aprovamos qualquer solução que implicasse diálogo político. Ele sabe. Nós anunciamos que aceitávamos o diálogo com todos os partidos políticos sírios. Quando nada disso funcionou, com a presteza que Erdogan precisava que funcionasse, ele mudou de conversa. E passou imediatamente a armar grupos terroristas. Erdogan mente. Aquelas propostas serviram-lhe como uma máscara.

Nós sempre aceitamos conselhos e contribuições de qualquer partido, em qualquer circunstâncias. Mas não aceitamos intervenção em assuntos internos da Síria. Parece que Erdogan entendeu mal nossa posição. Ele entendeu que as relações fraternas entre Turquia e Síria permitiriam intervenção em nossos assuntos internos, com o objetivo de derrubar um governo sírio legítimo. Mas, para mim, essa situação já estava bem clara, desde os primeiros dias.

Ulusal Kanal (2): Há notícias na imprensa turca, de que há pessoal dos serviços de segurança envolvidos com em atividades terroristas e ajudando grupos terroristas, trabalhando para infiltrá-los em território sírio. Alguns jornais dizem que a Turquia comete crime, encobrindo esse tipo de atividade. O que o senhor tem a dizer sobre isso?
Como já disse, o atual governo turco não está, de modo algum, contribuindo para pôr fim à matança do povo sírio. Há quem esteja à espera de que a Síria adote a via da retaliação. Não o faremos.

Estamos contra o crime de infiltrar terroristas em território sírio, e contra todos os atos criminosos. Mas entendemos que o povo turco é povo irmão dos sírios. Em terceiro lugar, retaliação é, precisamente, o que Erdogan deseja. Ele quer criar um conflito entre o povo turco e o povo sírio, tentando angariar apoio popular para suas políticas. Está tentando restaurar parte da popularidade que teve, e já perdeu.

Os sírios não cairemos nessa armadilha. Por dois motivos: por princípios e porque os interesses sírios estão alinhados com os interesses do povo sírio, embora não, no momento, com os interesses do atual governo turco. Nenhum conflito entre o povo sírio e o povo turco jamais servirá a qualquer interesse dos nossos povos. E só fará complicar ainda mais as coisas. O que fizemos nos últimos dez, doze anos, desde que o presidente [Ahmet Necdet] Sezer foi eleito, em 2000, foi construir o debate entre nossos povos, entre árabes e turcos. Agora, o presidente Erdogan quer pôr a perder tudo o que foi feito. Não cometeremos nenhuma retaliação contra o povo turco. Para saber, consultem os serviços turcos de inteligência.

Mas, até agora, não capturamos nenhum agente da inteligência ou do exército turco que estivesse agindo na Síria. Isso não significa que não estejam aqui. Estão apoiando os grupos terroristas. Os serviços de inteligência da Turquia estão fornecendo todo o treinamento, todo o equipamento, todas as estruturas de comunicação – o necessário apoio da imprensa, indispensável – a grupos terroristas para que se infiltrem em território sírio.

Do que vários terroristas já confessaram, já sabemos que há indivíduos envolvidos na Turquia. O princípio desse envolvimento está no apoio que o atual governo turco dá à ação dos grupos terroristas. O fato de que não haja pessoal da inteligência turca operando dentro da Síria não implica que não estejam ativos.

Ulusal Kanal (1): Suas declarações, senhor presidente, são bem claras sobre as políticas turcas. O Ministro de Relações Exteriores da Turquia, Davutoglu, disse que preferiria renunciar ao cargo, se tivesse de apertar a mão do presidente Bashar al-Assad, se ele permanecer no poder. O que significa isso, em termos das relações entre os dois países?
Não posso honrar essa declaração, com alguma resposta. Absolutamente não é o caso. Essa fala desonra o alto padrão moral do povo turco, que sempre testemunhei em minhas muitas visitas à Turquia. De minha parte, respeitado o alto padrão moral do povo sírio, não há o que responder. Minhas relações com Erdogan foram construídas como pontes entre nossos povos. Se o Primeiro-Ministro Erdogan e o atual governo turco já estão envolvidos na guerra que faz correr sangue sírio, já não se pode cogitar de pontes, nem pessoais, entre nós, nem entre eles, nem entre eles e o povo sírio.

Ulusal Kanal (2): Como o senhor deve ter sabido, quando o presidente Barack Obama esteve em Israel, o primeiro-ministro Netanyahu pediu desculpas à Turquia, sobre o que houve com o navio turco que levava ajuda a Gaza. Como o senhor interpreta esses desenvolvimentos?
Há uma pergunta clara e óbvia, nessa situação. O Primeiro-Ministro Netanyahu já era primeiro-ministro quando ocorreu o ataque ao navio turco, há três anos. Continua no mesmo posto. Por que jamais aceitou pedir desculpas antes, durante tanto tempo? O que mudou? É o mesmo Erdogan. É o mesmo Netanyahu. A grande mudança, de lá até hoje, é a situação na Síria. O que aconteceu prova, precisamente e muito claramente, que há um acordo entre Israel e Turquia, relacionado à situação síria. Também confirma que Erdogan está agora alinhado com Israel, trabalhando para agravar cada vez mais a situação na Síria. Nos últimos anos, Erdogan conseguiu mobilizar a opinião pública turca, como bem entendeu, contra a Síria. Também nunca desistiu de tentar cravar suas garras no estado sírio. A Síria continua a defender-se nessa batalha feroz. Erdogan não teria outro a quem recorrer, se não a Israel, potência ocupante, inimigo de todos os povos árabes.

Ao mesmo tempo, essas desculpas também ajudam Erdogan a restaurar, pelo menos em parte, a própria credibilidade, que ele perdeu, na Turquia.

Ulusal Kanal (1): Quero retomar o que aconteceu em passado recente. Dia 21 de março, reuniram-se Erdogan e [Abdullah] Öcalan [do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) [1]. Nessa reunião, discutiram a formação de um novo Oriente Médio, com árabes, sírios, curdos e turcos. O senhor acompanhou o desenrolar dessas reuniões e declarações?
Por hora, só temos a informação distribuída pela mídia. Ainda não recebemos os detalhes dessas conversações, de nenhum dos lados. Já há alguns anos, em todos os passos adotados para resolver a questão curda, nossa posição declarada sempre foi aceitar qualquer solução que satisfaça aos curdos e aos turcos, porque nunca quisemos mais e mais derramamento de sangue na Turquia, que sempre teria impacto negativo por aqui. Qualquer solução negociada e aceita entre essas duas partes terá nosso apoio, porque o povo curdo é parte natural do tecido da região. Não são hóspedes nem imigrados. Vivem aqui há séculos, há milhares de anos. Mas qualquer solução estável para a questão turco-curda depende hoje da credibilidade de Erdogan. É homem em quem não confio. Não cumpre o que promete. Todos os passos que está empreendendo hoje visam exclusivamente a angariar apoio político para ele mesmo. Aqui, outra vez, cabe a mesma pergunta óbvia: por que não tomou exatamente a mesma providência, de negociar com os curdos, há poucos anos? Outra vez a resposta é a mesma: isso, agora, também está relacionado à situação na Síria. E às eleições na Turquia.

Ulusal Kanal (2): O senhor disse que resolver a questão turco-curda é tema importante para toda a região. Podemos ouvir de Vossa Excelência uma opinião mais ampla sobre como resolver essa questão?
Temos de ser bem claros: nacionalidade é diferente de etnicidade. Vivemos em região mestiça. O fato de você ser turco não implica que não possa ser curdo ou armênio, ou de origem árabe. Somos árabes pela cultura e pela língua. A situação na Turquia é semelhante à situação na Síria. Quando digo “árabe” não falo de etnia ou raça.

Os dois nacionalismos, o turco e o árabe, mostram o quanto o modelo nacionalista pode ser civilizado, de inclusão de diferentes. O problema é que esse conceito, no passado, foi adotado por uma mentalidade de exclusão, de uma cultura rejeitar ou eliminar a outra. Eu entendo que um dos aspectos mais belos dessa região é a diversidade. E um dos maiores perigos que corremos é não ver essa diversidade como fator de enriquecimento e de empoderamento. Mas em vez disso, temos assistido a pessoas que convocam forças e interesses de fora, para nos lançar uns contra os outros e criar conflitos por aqui. Foi o que se viu acontecer no início do século passado, quando começaram os conflitos entre turcos e árabes, nos dias finais do Império Otomano.

Muitos grupos nacionalistas árabes quiseram que diferentes nacionalismos árabes florescessem dentro do Império Otomano. Mas isso gerou conflitos e levou a erros de todos os lados, o que facilitou a intervenção por atores estrangeiros.

Hoje, temos de ver a situação com interesse em promover a inclusão de todos. Somos feitos do mesmo tecido diverso, entretecidos de diferentes cores.

Ulusal Kanal (2): Senhor presidente, uma das questões mais difíceis atualmente em discussão na Turquia é a questão do PKK. Há discussões sobre organizações que estariam operando na Síria e teriam ligações com o PKK, que teria forte influência sobre aquelas organizações. O que se diz é que essas organizações estariam muito interessadas em criar um vácuo militar no norte da Síria, a ser preenchido por aquelas organizações. Como o senhor, presidente, lê essas informações?
Quando há caos em qualquer estado, como é o caso hoje na Síria, sempre aparecem muitos grupos interessados em preencher os vácuos. Às vezes, são gangues, interessados só em matar e roubar. Às vezes são grupos políticos, às vezes são partidos, com programa político. Existem na Síria, na Turquia, no Iraque, em outros locais. Não se pode generalizar, e incluir todos os curdos no que é agenda só de pequenos grupos. Muitos curdos são patriotas, querem viver na Síria. A emergência de alguns casos específicos não é motivo para que generalizemos, como se houvesse situação homogênea. A separação depende de outro tipo de ambiente. Tem de haver amplo apoio popular. Ou a luta é feita com interessados externos. Entre curdos sírios e curdos turcos, as circunstâncias são muito diferentes. No momento, essa questão não me preocupa.

Ulusal Kanal (1): Senhor presidente, temos agora uma questão muito importante. Desde o início dos eventos na Síria, alguns partidos e pesquisadores insistem em discutir outro projeto, envolvendo a superação dos estados no norte da Síria, norte do Iraque, sul e leste da Turquia, separando essas regiões de seus respectivos estados centrais. O senhor acha que há o risco de o norte da Síria acabar por superar o estado central?
Como eu já disse, as atuais circunstâncias na Síria não sugerem qualquer movimento nessa direção, sobretudo se se considera a opinião pública em geral. O povo sírio rejeita completamente qualquer ideia de separação do estado sírio. Nenhum estado soberano aceitaria que partes do território sejam cortadas do território principal. Essa posição é categoricamente inaceitável e absolutamente indiscutível.

Ulusal Kanal (1): Baseados em nossas perguntas e suas respostas: parece haver um plano bem claro, construído por países ocidentais, em cooperação e coordenação com alguns países da região, para criar um Grande Curdistão, que seria formado de uma parte do norte do Iraque, leste do Irã, norte da Síria, e sul e leste da Turquia. Parecem decididos a alcançar esse objetivo. Estamos andando nessa direção?
Não acredito que esses quatro países, Iraque, Síria, Irã e Turquia, subscreveriam essa proposta. Estados independentes, hoje, trabalham pela integração, não pela subdivisão e separação. Infelizmente, nossa região é uma exceção, e sinal de atraso. Hoje, o que se vê é a formação de grandes blocos de países. O Brics é bom exemplo. Os estados buscam unir-se em blocos maiores, porque isso é uma exigência dos tempos que vivemos. Por que, então, em nossa região, andaríamos na direção contrária, buscando a segmentação? O que impediria que pessoas de diferentes nacionalidades, religião, etnia, vivam juntas?

Se aceitarmos a noção da separação, teremos de viver com as consequências, a saber: fragmentação em vários pequenos miniestados baseados em etnicidade, reforçando as diferenças. Assim se cria uma situação extremamente perigosa, que só gerará mais guerras no futuro. Por isso não me parece que essa proposta de divisão seja proposta a considerar, nem que seja proposta séria.

Esses quatro estados que a proposta divisionista considera deveriam, isso sim, dedicar-se a fazer com que todos os seus cidadãos sintam-se como cidadãos de primeira classe. Todos com direitos e acesso igual aos direitos. A solução, por essa via é clara e simples. Mas se, por outro lado, há cidadãos que se sentem humilhados, é normal que pensem em separação.

Ulusal Kanal (2): Senhor presidente, o senhor teve um projeto interessante. O senhor falava da construção de meios para a unificação política e econômica dos cinco ‘'curdistões'’ [orig. Five “Cs”]. Pode falar ao público turco sobre como todos poderíamos nos beneficiar do seu projeto?
É exatamente o que já disse, quando falei sobre a exigência, no mundo contemporâneo, de integração e unificação. A quem interessaria criar mais um estado, à maneira dos estados que existiam antigamente, em vastos impérios territoriais? Hoje é possível nos unirmos nós mesmos, com vistas aos nossos próprios objetivos gerais de todo o Oriente Médio. Por exemplo, todos podemos construir estradas, e diferentes vias para transporte terrestre. Vias regionais de fornecimento de água, gás, petróleo, outras formas de energia. Criar redes que unam nossos países, nessa região crucialmente estratégica do mundo que se designa como “os cinco curdistões”. Todos os países devem dirigir investimentos para essa região. Assim se fortaleceriam todos os países e também os vários nacionais de etnia curda.

Essa visão exige determinação, vontade e capacidade para tomar decisões independentes na nossa região, sobretudo se muitos grandes estados ocidentais não têm interesse algum em qualquer projeto que vise a beneficiar os cidadãos da nossa região, a fortalecer a região. Não têm qualquer interesse em promover a estabilização do Oriente Médio.

Não me parece que, hoje, haja condições objetivas para trabalhar na direção desse nosso projeto. Há muitos problemas na Síria, no Líbano, no Iraque. Praticamente todos esses problemas são resultado da intervenção do ocidente. E, na Turquia, por exemplo, entendo que não há governo independente. E a Turquia seria elemento central para implementar esse projeto, sobretudo por sua posição estratégica.

Mas nada disso significa que o projeto tenha sido cancelado. Temos de manter na cabeça a ideia de que o futuro dessa região depende de grandes projetos como esse. Se todos continuarmos confinados em nossas respectivas fronteiras nacionais, continuaremos a ser países pequenos, na escala global. Mesmo no caso de países de grande território, como Turquia e Irã, não conseguirão manter-se sozinhos, se não estruturarmos esses grandes projetos transfronteiras.

Ulusal Kanal (2): A partir de sua resposta, gostaria de passar a outra questão, relacionada às guerras sectárias. Muita gente fala de guerra entre sunitas e xiitas na região. Na sua opinião, os conflitos em curso podem ser vistos como sectários por natureza?
Essa questão foi levantada pela primeira vez em 1979, a partir da Revolução Iraniana, que derrubou do poder um dos mais importantes aliados dos EUA na região. A única solução foi apresentar aquela revolução como se fosse revolução xiita, para que outras seitas se opusessem a ela. Nesses termos, inventaram a guerra Irã-Iraque, que foi apoiada por alguns países do Golfo. Pouco depois, a Fraternidade Muçulmana na Síria foi usada para o mesmo objetivo: para criar oposições sectárias. Falharam nos dois casos, na primeira e na segunda tentativa. Agora, três décadas depois, não há outra escolha, além de criarem novamente a alternativa sectária. Por isso, voltam a levantar a mesma questão agora.

No início da crise, as posições foram sectárias. Falharam, até agora. Se tivessem sido bem sucedidos, o regime teria sido fragmentado, em resultado desse conflito. O aspecto positivo disso tudo, é que a opinião pública vai-se tornando cada dia mais consciente das ideologias sectárias. Mas há bolsões sectários, alimentados pela ignorância, que sempre há, em qualquer sociedade.

Acredito que, agora, a essência do conflito não é sectária. O conflito hoje se trava entre forças e estados que querem empurrar os povos para aqueles estágios atrasados, e forças e estados que querem que os povos da região possam avançar. Entre os que querem que os povos da região encontrem aqui uma pátria onde possam viver livres, e outros que querem que aqui só haja estados-satélites, exclusivamente para promover interesses daqueles estados e forças, não dos povos da região. Ao mesmo tempo, aquelas forças são parte de uma luta internacional de interesses conflitantes, da qual Síria e Turquia são parte. Essa luta está sendo afetada por diferentes fatores que podem levar à fragmentação dessa região, de modo a permitir que potências globais passem a controlar nosso destino e nosso futuro.

Ulusal Kanal (2): Mesmo assim, fora da Síria, estão sendo adotadas políticas oficiais baseadas em divisões e fragmentação baseadas em etnicidade e por seitas religiosas. Por outro lado, vivemos e testemunhamos na Turquia o processo do qual o senhor fala, especialmente depois que a República secular foi criada e dirigida por Mustafá Gamal Ataturk. Mas, infelizmente, esses estados e governos afastaram-se daquele projeto, que trocaram por projetos religiosos e sectários. Como o senhor vê o futuro desses sistemas políticos?
Esses sistemas políticos e establishments que buscam a divisão e a fragmentação estão preparados para guerras que se arrastem por anos, mesmo séculos em nossa região. Destruir tudo. Impedir qualquer prosperidade, qualquer desenvolvimento, devolver à Idade Média vários aspectos de nossa vida. Isso é muito perigoso. Quando penso em secularismo, falo em liberdade para todas as nossas religiões e práticas religiosas. Nossa região é basicamente conservadora. Muitos são religiosos e devem ser livres para praticar a religião que prefiram, para cumprir seus rituais. Não devemos pensar nem por um momento, que haja alguma contradição entre etnicidade e religião. Essa é a essência de nosso pensamento sobre secularismo. Por isso, sempre trabalharei pela unificação dos nossos povos nessa região.

Como já disse antes, não importa a natureza das nossas questões entre Síria e Turquia, não se pode permitir que coisa alguma afete as relações entre nossos povos, entre os sírios e os turcos. Porque na aproximação entre nossos povos está a única garantia que temos para preservar a diversidade, que é a riqueza de nossas sociedades.

Ulusal Kanal (1): Senhor presidente, o senhor acompanha de perto os desenvolvimentos na Turquia?
É normal que acompanhe. O que acontece na Turquia acontece em outros grandes países, que ocupem posição estratégica e tudo que aconteça nesses países afeta a situação síria. Ao mesmo tempo, há tantas semelhanças: a natureza do povo, as emoções, a textura do tecido social na Turquia. Há muitas semelhanças. Repito: o que aconteça na Turquia sempre terá impacto sobre a Síria, Por isso entendemos que a estabilidade na Turquia é do mais alto interesse também da Síria. E vice-versa. Se vocês sofrerem turbulências, nós seremos afetados. O desafio, hoje, é convencer o atual governo turco, especialmente o Primeiro-Ministro Erdogan, de que fogo na Síria queimará a Turquia. Infelizmente, ele não vê essa realidade.

Ulusal Kanal (2): Quanto ao diálogo com a oposição, o senhor sempre falou a favor de solução política e diálogo direto com a oposição. Há prazos e limites [orig. red lines, linhas vermelhas] para esse diálogo?
A única “linha vermelha” é qualquer intervenção estrangeira. Qualquer diálogo terá de ser diálogo sírio, exclusivamente entre sírios. Não se admite nenhuma intervenção estrangeira nesse diálogo. Exceto por esse limite, absolutamente não há qualquer outro limite. Os sírios podem discutir tudo que queiram discutir, qualquer tema, qualquer questão. A Síria é a pátria deles todos e todos podem discutir o que queiram. Não há “linhas vermelhas”.

Ulusal Kanal (2): Muitos veículos de imprensa insistem em que a Síria seria governada por uma ditadura alawita, interessada exclusivamente em eliminar os sunitas. E até o assassinato de Mohammad Said Ramada al-Bouti entra nesse quadro. Como o senhor responde a essas acusações?
Falamos no início sobre a diversidade dessa região. E vivemos estáveis por muitas décadas, sem qualquer problema interno. Como teríamos conseguido aquela estabilidade, se não houvesse aqui um governo que é a imagem do próprio povo? Seja onde for, se o governo é controlado por um ou mais grupos, contra outros grupos sociais e, assim, não reflete as características de toda a população, o governo não pode sobreviver. Nenhuma dessas acusações é verdadeira. Vivemos em paz na Síria durante décadas, porque o governo sempre foi expressão da diversidade do próprio povo.

Quanto à morte do Dr. al-Bouti [muçulmano sunita tradicionalista], é ridículo acusar a Síria de qualquer envolvimento naquele assassinato. Essas acusações são feitas pelos mesmos grupos que, antes, o acusavam, apenas poucos dias antes, de ser porta-voz de autoridades religiosas, em assuntos religiosos. É operação pensada para ferir a popularidade do Dr. al-Bouti entre os sírios e entre seus seguidores no mundo muçulmano. Ele nunca teve autoridade, nem foi porta-voz de nenhuma autoridade. Jamais quis para ele qualquer autoridade. Nunca quis ser ministro, ou moufti, nunca pediu dinheiro a ninguém e era homem de vida simples. Seu único crime é que se pôs à frente do grupo de religiosos [sunitas] ativamente envolvido no trabalho de promover divisões sectárias entre os sírios. O Dr. al-Bouti estava à frente daquele grupo, primeiro, por sua posição na Síria e no mundo muçulmano. Segundo, porque tinha grande dificuldade para entender o que realmente está acontecendo.

Não há dúvida de que sem a concordância desses líderes religiosos é praticamente impossível criar os conflitos religiosos, mas os líderes acabam pagando com a própria vida, pelo sectarismo que pregam. Não há dúvidas de que o Dr. al-Bouti tinha grandes defeitos, sobretudo na posição que adotou nessa guerra. Não apoiava o Estado sírio e aliou-se aos estrangeiros. Por esse e outros erros, pagou com a vida, numa luta religiosa que ele mesmo incentivou. Mas outros líderes religiosos que não compactuam com o movimento para separar os grupos religiosos também têm sido assassinados. Mais um deles foi assassinado, há poucos dias, em Aleppo. Todos os líderes religiosos que não preguem divisionismos e ensinem sobre tolerância religiosa, sobre moderação, opõem-se a guerras religiosas, não as incitam.

Ulusal Kanal (1): Muito obrigado, senhor presidente, por essa entrevista a Ulusal Kanal. Há mais alguma coisa que o senhor queira dizer ao povo turco?
Estamos agora num momento crucial da história. Falo da Síria, da Turquia, de toda a região. Tudo que se vê acontecendo aqui tem alguns elementos espontâneos e tem também elementos planejados fora daqui, e que foram planejados com o objetivo de alcançar pleno controle de toda essa região. O que acontece hoje é, na essência, similar ao que aconteceu há 100 anos, em termos de projeto para redividir a região. Mas há 100 anos, nós aceitamos a redivisão da região: uma parte para eles, uma parte para nós, uma parte para outros interessados. Dessa vez, contudo, não podemos aceitar nenhum redesenho da região que não considere os interesses dos próprios povos da região. O povo terá de tomar suas decisões. Nós decidiremos. Infelizmente, vários governos da região não veem as coisas desse modo. E aceitam ordens e agem em obediência ao diktat dos interesses de estados estrangeiros, na maioria estados ocidentais.

Nos últimos tempos já se viram várias tentativas para semear a discórdia entre os povos sírio e turco. Quero dizer que o trabalho que iniciamos há dez anos, com o presidente Sezer deve ser retomado e continuado. Refiro-me ao trabalho para construir solidariedade e amizade entre turcos e sírios. Nada disso será jamais possível se não houver relações normais entre nossos estados. Como já disse, a prosperidade de um dos estados da região refletir-se-á nos demais. Pela mesma razão, o que haja de divisões e conflito num de nossos países, respingará fatalmente sobre o outro.

Governos passam e é importante que passem. Por isso temos de construir projetos que fortaleçam os povos da região, não projetos que só interessam a potências estrangeiras. É a mensagem que tenho para o povo turco. [despedidas e fim da entrevista]

Nota dos tradutores:
[1] Partiya Karkerên Kurdistan; em português, Partido dos Trabalhadores do Curdistão. O PKK tem um braço armado, Força de Defesa do Povo (conhecido pela sigla HPG), listado como “organização terrorista” pela Turquia e pelos EUA; até recentemente, também pela União Europeia, que o deslistou por ordem judicial.

Fonte Redecastorphoto. Traduzido pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu


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