Em matéria publicada na Folha de S. Paulo do dia 30 de janeiro, o jornalista especialista em divulgação científica, Reinaldo José Lopes, descreve um interessante estudo liderado por pesquisadores britânicos e publicado pela respeitada revista científica Science que expõem evidências do uso de ferramentas por alguns dos mais antigos ancestrais humanos que se tem notícia, os Austrolopitecos, seres que perambularam pelo continente africano há cerca de 3 milhões de anos e cuja descoberta decidiu em favor de Engels a polêmica sobre as características de nossos ancestrais, ao revelar seres adaptados ao caminhar ereto com modesto volume cerebral.
O estudo analisou ossos fossilizados através de tomografias computadorizadas em busca de padrões compatíveis com o esforço necessário para a manipulação de ferramentas primitivas. A relevância do estudo é maximizada pelo fato de que ele pode antecipar, em pelo menos meio milhão de anos, o uso corriqueiro de ferramentas por nossos ancestrais, uma vez que as primitivas ferramentas de pedra e osso que chegaram até nós tradicionalmente fixavam seu advento há "apenas" 2,5 milhões. A nova datação poderá ainda ser revista por novos estudos que prevêem a utilização da técnica inovadora desenvolvida pelos cientistas britânicos em fósseis ainda mais antigos, com 4 milhões de anos.
Durante décadas, estudiosos da evolução humana, contaminados pelo idealismo que domina o cenário filosófico, pelo menos desde a Grécia Antiga, insistiam em argumentar que o aumento do volume do cérebro deveria ter precedido a postura ereta em nossa jornada evolutiva. Tal ideia se fundamentava na necessidade de se tentar conciliar as descobertas proporcionadas pelo surgimento da Teoria da Evolução e o avanço de ciências como a biologia, a antropologia e a paleontologia com a abordagem filosófica idealista que coloca a mente (espírito) acima da realidade material. Os resultados expostos pela pesquisa recente reforçam a tese apresentada por Engels em seu texto publicado no distante ano de 1876, onde o idealismo hegemônico é confrontado pelo materialismo dialético.
Não deve causar estranheza o fato de que a tese revolucionária proposta por Engels tenha passado solenemente ignorada no meio científico durante as décadas que separam a publicação de seu texto da descoberta do primeiro fóssil de australopitecus, assim como não causa surpresa o fato de, ainda hoje, a contribuição marxista no campo da evolução humana passe quase completamente despercebida. Na verdade, durante toda a vigência da sociedade de classes, das sociedades escravistas do período clássico à atual sociedade capitalista neste inicio do século XXI, foi do interesse das elites dominantes promover sistemas filosóficos que valorizem as idéias, o trabalho intelectual, a perfeição idealista e as abstrações metafísicas acima da realidade concreta, material, objetiva, conseqüentemente imprecisa, contraditória, "imperfeita".
Esta dicotomia entre trabalho braçal e intelectual, entre razão e emoção, entre matéria e espírito, entre ideal e concreto, sempre esteve a serviço da dominação das elites e nos ajuda a explicar fenômenos tão diversos quanto o desprezo dos antigos filósofos gregos pela experimentação e a arrogância que insiste em dominar o ambiente acadêmico contemporâneo. Assim, a visão de que o incremento do volume cerebral deveria preceder o caminhar ereto na evolução humana, embora possa parecer ridícula sob a luz de nossa atual compreensão, exprimiu a influência do idealismo filosófico sobre a investigação científica da evolução humana.
O paleontólogo e biólogo evolucionista Stephen Jay Gould frisou esta importantíssima conclusão de Engels ao lhe prestar uma justa homenagem em sua brilhante obra intitulada "Darwin e os Grandes Enigmas da Vida", onde afirma que "a importância do ensaio de Engels está não nas suas conclusões substanciais, mas sim na sua aguçada análise política do motivo pelo qual a ciência ocidental se achava tão apegada à asserção a priori da primazia cerebral". Engels, lançando mão de seu inovador método de análise, o materialismo dialético, e aplicando-o às ciências naturais, foi capaz de questionar o modelo hegemônico no meio científico para propor que nossos ancestrais precisariam primeiramente ser capazes de caminhar para, tendo as mãos livres, poder, através do trabalho, ou seja, da transformação ativa da natureza a sua volta, obter as condições materiais necessárias para o desenvolvimento de seu intelecto em um processo que culminaria em um incremento sem precedentes de complexidade, não só na estrutura e funcionamento de seu cérebro, mas, também, do ambiente social que serviu de meio ao seu desenvolvimento. Afinal, como ressaltou Eric Hobsbawm: "a história é a continuação da evolução biológica do Homo Sapiens por outros meios".
Em uma admirável mostra de prudência e humildade o socialista alemão em uma outra obra conhecida como "O Anti-duhring", reconheceu suas próprias limitações ao afirmar: "o progresso da ciência teórica tornará supérflua grande parte, senão a totalidade, do meu trabalho. Porque é considerável a simples tarefa de pôr em ordem as descobertas puramente empíricas que se acumulam sempre, a fim de tornar progressivamente mais evidente o caráter dialético dos fenômenos, mesmo aos mais recalcitrantes empiristas".
No que pese as limitações impostas pela ciência de sua época, em linhas gerais as teses levantadas por Engels em seu ensaio clássico sobre a evolução humana são hoje amplamente respaldadas pelas mais recentes descobertas nos campos da biologia e paleoantropologia, demonstrando não só a vitalidade e pertinência do método materialista dialético, proposto por ele em parceria com Marx, como a viabilidade de sua aplicação para campos de conhecimento que vão muito além dos limites arbitrariamente estabelecidos por seus detratores e supostos interpretes, que tanto teimam em aprisioná-lo no escopo estrito das ciências sociais.
Felizmente, a realidade tem insistido em frustrar os pretensos coveiros do marxismo e nos apóia a declarar que o método materialista dialético segue sendo o que há mais atual na história do pensamento humano. A história segue apesar dos que insistem em ignorá-la. Ainda bem!