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070216 vigilanciaEsquerda - [Ignacio Ramonet] Cadeias de televisões que espiam. Reconhecimento facial de multidões. Mapeamento completo de atitudes. Como a “internet das coisas” e o “big data” inibem e amedrontam as sociedades.


Na nossa vida quotidiana deixamos, constantemente, indicadores que entregam a nossa identidade, mostram os nossos relacionamentos, reconstroem as nossos deslocações, identificam os nossas ideais, revelam os nossos gostos, as nossas escolhas e as nossas paixões – incluindo as mais secretas. Por todo o globo, múltiplas redes de controle maciço não param de nos vigiar. Em todos os lugares, há alguém que nos observa através de fechaduras digitais. O desenvolvimento da internet das coisas e a proliferação de objetos conectados (1) multiplicam a quantidade de todo o tipo de delatores que nos rodeiam. Nos Estados Unidos, por exemplo, a empresa eletrónica Vizio, sediada em Irvine (Califórnia), fabricante de televisões inteligentes ligadas à internet, revelou recentemente que os seus aparelhos espiavam os seus utilizadores através de dispositivos tecnológicos incorporados nos produtos.

Essas televisões gravam tudo o que seus espectadores consomem em matéria de programas audiovisuais: os programas em canais de cabo, o que se vê em DVD, os pacotes de acesso à internet ou até mesmo os jogos. Dessa maneira, a Vizio pode saber tudo sobre o que os seus clientes preferem em matéria de lazer audiovisual. E, consequentemente, pode vender essas informações a empresas publicitárias que, através da análise dos dados recolhidos, conhecerão com precisão os gostos dos seus utilizadores e estarão em melhor posição para os ter debaixo das suas miras. (2)

Estamos dispostos a aceitar a devassa das nossas vidas?

Por si só, essa não é uma estratégia diferente daquela que, por exemplo, o Facebook e o Google utilizam frequentemente para conhecer seus internautas e oferecer uma publicidade ajustada aos seus supostos gostos. Recordemos que, em 1984 de George Orwell, os televisores – obrigatórios em cada residência – “viam”, nos seus ecrãs, o que as pessoas faziam. (“Agora podemos vê-los!”). E a questão obrigatória hoje, diante da existência de aparelhos como os da Vizio, é saber se estamos dispostos a aceitar que a nossa televisão nos espie.

A julgar pela denúncia apresentada, em agosto de 2015, pelo deputado californiano Mike Gatto contra a empresa sul-coreana Samsung, parece que não. A empresa foi acusada de também equipar os seus novos televisores com um microfone oculto, capaz de gravar as conversas dos telespectadores, sem que estes soubessem, e de as transmitir a terceiros (3). Mike Gatto, que preside à Comissão de Proteção ao Consumidor e da Privacidade na Câmara Estadual, apresentou um proposta de lei proibindo que televisões espiassem as pessoas. Ao contrário, Jim Dempsey, diretor do centro de Direito e Tecnologias, na Universidade da Califórnia, acredita que os televisores-espiões irão proliferar: “A tecnologia permitirá analisar os comportamentos das pessoas. E isso não será interessante apenas para os publicitários. Também permitirá fazer avaliações psicológicas ou culturais, que, por exemplo, interessarão também às companhias de seguros”. Sobretudo, se se considera que as empresas de recursos humanos e de trabalho temporário já utilizam sistemas de análise de voz para estabelecer um diagnóstico psicológico imediato das pessoas que lhes telefonam à procura de emprego.

Espalhados por todo o lado, os detetores das nossas ações e atitudes abundam à nossa volta. Sensores registam a velocidade dos nossos movimentos ou dos nossos itinerários; tecnologias de reconhecimento facial memorizam o formato dos nossos rostos e criam, sem que saibamos, bases de dados biométricos de cada um de nós. Isto sem falar dos novos de chips de identificação por radiofrequência (RFID, sigla em inglês) (4), que, automaticamente, descobrem o nosso perfil de consumo, assim como fazem os “cartões de fidelidade” que a maioria dos grandes supermercados e grandes marcas oferecem de maneira generosa.

Já não estamos sozinhos frente ao nosso computador. Quem, nesta altura, duvida que estão examinar e filtrar as nossas mensagens eletrónicas, as nossas pesquisas de internet, as nossas conversações nas redes sociais? Cada clique, cada telefonema, cada compra com o cartão de crédito e cada navegação na internet, fornecem excelentes informações sobre cada um de nós, que são entregues e analisadas a serviços de corporações comerciais, empresas publicitárias, entidades financeiras, partidos políticos ou autoridades governamentais.

O (des)equilíbrio entre liberdade e segurança

O necessário equilíbrio entre liberdade e segurança corre, portanto, o perigo de se romper. No filme 1984, baseado na obra de Orwell e dirigido por Michael Radford, o presidente supremo, chamado Big Brother, definia assim sua doutrina: “A guerra não tem por objetivo ser vencida, o seu objetivo é continuar”, e: “A guerra é feita pelos mandatários contra os seus próprios cidadãos, e tem, por objetivo, manter intacta a estrutura dessa mesma sociedade” (5). Dois princípios que, estranhamente, são a ordem do dia nas sociedades contemporâneas. Com o pretexto de proteger toda a sociedade, as autoridades olham para cada cidadão como um potencial infrator. A guerra permanente (e necessária) contra o terrorismo proporciona-lhes o álibi moral perfeito e favorece a construção de um impressionante arsenal de leis para estabelecer o controle social total.

Além disso, deve levar-se em conta que as crises económicas aumentam o descontentamento social; que, aqui ou ali, podem tomar a forma de revoltas entre cidadãos, levantamento de camponeses ou rebeliões nas cidades. Mais sofisticadas que as cassetetes e os jatos de água das forças de segurança, as novas armas de vigilância permitem identificar melhor os seus líderes e tirá-los de cena antecipadamente.

As autoridades dizem-nos: “Haverá menos privacidade e menos respeito pela vida particular, mas haverá mais segurança”. Mas em nome desse imperativo instala-se, de maneira furtiva, um regime de segurança que podemos classificar como “sociedade de controle”.No seu livro “Vigiar e Punir”, o filósofo Michel Foucault explica como o “Panótico” (“o olho que tudo vê”) (6) é um dispositivo arquitetónico que cria uma “sensação de omnisciência invisível” e permite que os guardas vigiem sem serem vistos dentro da prisão. Atualmente, o princípio de “observação global” é aplicado a toda sociedade.

Na prisão, os detidos expostos permanentemente à observação oculta dos “vigilantes”, vivem com o temor de serem apanhados em flagrante cometendo alguma falta. Isso leva-os a autodisciplinarem-se Podemos deduzir que o princípio organizador de uma sociedade securitária é o seguinte: estabelecendo-se uma vigilância ininterrupta, as pessoas acabam por modificar os seus comportamentos. Como afirma Glenn Greenwald, “as experiências históricas demonstram que a simples existência de um sistema de vigilância em grande escala, seja qual for a maneira da sua utlização, é o suficiente para reprimir dissidentes. Uma sociedade com a consciência de estar permanentemente sob vigilância torna-se, por consequência, mais dócil e amedrontada”. (7)

Hoje em dia, o sistema de observação global foi reforçado com uma particular novidade em relação às sociedades de controlo anteriores, que confinavam as pessoas consideradas antissociais, marginais, rebeldes ou inimigas em lugares de privação fechada: prisões, reformatórios, manicómios, asilos, campos de concentração, etc. As sociedades modernas de controlo oferecem uma aparente liberdade a todos os suspeitos, ou seja, a todos cidadãos, enquanto estes ficam sob permanente vigilância eletrónica. A contenção digital sucedeu à contenção física.

Às vezes, essa vigilância constante também acontece com a ajuda de delatores tecnológicos que adquirimos “livremente”: computadores, telemóveis, tablets, bilhetes eletrónicos para transportes públicos, cartões de crédito inteligentes, cartões de fidelidade, aparelhos GPS, etc. Por exemplo, o portal Yahoo!, que é consultado regularmente por cerca de 800 milhões de pessoas, captura uma média de 2.500 rotinas de cada um de seus utlizadores por mês.

Já o Google, cujo número de utilizadores é superior a mil milhões dispõe de um impressionante número de sensores para espiar o comportamento de cada utlizador(8): o motor de busca Google Search, por exemplo, permite saber onde o internauta se encontra, o que ele procura e em que momento. O navegador Google Chrome, um mega-delator, envia diretamente para a Alphabet (a empresa matriz do Google) tudo o que o utlizador faz quando navega na internet. O Google Analytics elabora estatísticas muito precisas sobre a navegação dos utlizadores na rede. O Google Plus recolhe informações complementares. O Gmail analisa a correspondência trocada – o que revela muito sobre o remetente e seus contactos. O serviço DNS (Sistema de Nome de Domínio) do Google analisa os sites visitados. O YouTube, o serviço de vídeos mais visitados do mundo, que também pertence à Google – e portanto, à Alphabet – regista tudo o que fazemos. O Google Maps identifica o lugar em que nos encontramos, para onde vamos, quando e qual o itinerário que escolhemos ; a AdWords sabe o que queremos vender ou promover.

E desde o momento em que ligamos um smartphone que opera com Android, o Google sabe imediatamente onde estamos e o que estamos fazer. Ninguém nos obriga a utilizar o Google, mas quando o fazemos, eles sabem tudo sobre nós. E, segundo Julian Assange, informa imediatamente as autoridades dos Estados Unidos.

Noutras ocasiões, os que espiam e rastreiam os nossos movimentos são sistemas dissimulados ou camuflados, semelhantes aos radares nas avenidas, os drones ou as câmaras de vigilância (também chamadas de “videoproteção”). Este tipo de câmara tem proliferado tanto que, por exemplo, no Reino Unido – onde existem mais de 4 milhões destes equipamentos, um para 15 habitantes – um pedestre pode ser filmado em Londres até 300 vezes ao dia. E as câmaras de última geração, com a Gigapan, de altíssima definição (mais de mil milhões de pixels) permitem obter, apenas com uma fotografia e através de um poderoso zoom que entra na própria fotografia – a ficha biométrica do rosto de cada pessoa presente num estádio, num comício ou numa manifestação política. (9)

Apesar de existirem vários estudos, que já demonstraram a fraca eficiência da videovigilância (10) em matéria de segurança, esta técnica tem sido adotada pelos grandes meios de comunicação. Uma parte da opinião pública acaba por aceitar a restrição de suas próprias liberdades: 63% dos franceses declaram estar dispostos a uma “limitação das liberdades individuais na internet, por causa da luta contra o terrorismo”. (11).

O que demonstra haver, ainda, muita margem de submissão a ser explorada pelos que nos vigiam.

Artigo publicado por Ignácio Ramonet em Outras Palavras em 2 de fevereiro de 2011. Tradução de Vinícius Gomes de Melo.

Notas:

(1) A expressão “objetos conectados” refere-se àqueles cuja missão principal não é apenas a de ser periféricos informáticos ou interfaces de acesso à web, mas agregar, graças a uma conexão com a internet, valor adicional em termos de funcionalidade, informação, interação com o entorno ou de uso (Fonte: Dictionnaire du Web)

(2) El País, 2015

(3) A partir de então, a Samsung anunciou que mudaria a sua política, e assegurou que o sistema de gravação instalado nos seus televisores só seria ativado quando o espetador decidisse utlizar o botão de gravação

(4) Que já são parte de muitos dos produtos habituais de consumo, assim como os documentos de identidade.

(5) Michael Radford, 1984

(6) Inventado em 1791 pelo filósofo utilitarista inglês Jeremy Bentham.

(7) Glenn Greenwald, Sem lugar para se esconder, Editora Sextante, 2014.

(8) Ver “Google et le comportement de l’utilisateur”, [“Google e o comportamento do utilizador”], AxeNet.

(9) Ver, por exemplo, a fotografia da cerimónia da primeira posse do presidente Obama, em Washington, 20/1/2009.

(10) “Assessing the impact of CCTV” [“Avaliando o impacto da CCTV”], a mais completa informação dedicada ao tema, publicado em fevereiro de 2005 pelo ministério do Interior britânico (Home Office), marca um ponto contra a videovigilância. Segundo este estudo, a debilidade do dispositivo deve-se a três elementos: a execução técnica, a ambição extrema dos objetivos pretendidos e o fator humano. Ver Noé Le Blanc, “Sous l’oeil myope des caméras”, Le Monde Diplomatique, Paris, setembro de 2008.

(11) Le Canard enchaîné, Paris, 15/4/2015


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