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O sentido comunitário na narrativa africana: o caso de Moçambique (II)

22Moçambique - Buala - [Francisco Noa] As narrativas acima referidas permitem-nos afirmar que, na moderna narrativa africana, sem estarem definitivamente abandonadas quer a necessidade de uma lição moral, quer a perseguição de uma ideia de totalidade, o que assistimos é uma transfiguração desses mecanismos decorrentes tanto das mutações da própria sociedade sob o influxo da modernidade, como da adopção de novos dispositivos estético-literários e de opções temáticas, em certa medida, sintonizados com uma ordem cultural ainda dominante.


Entre o sentido comunitário e o individual

As narrativas acima referidas permitem-nos afirmar que, na moderna narrativa africana, sem estarem definitivamente abandonadas quer a necessidade de uma lição moral, quer a perseguição de uma ideia de totalidade, o que assistimos é uma transfiguração desses mecanismos decorrentes tanto das mutações da própria sociedade sob o influxo da modernidade, como da adopção de novos dispositivos estético-literários e de opções temáticas, em certa medida, sintonizados com uma ordem cultural ainda dominante.

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Discutindo a questão do cânone e dos imperativos formais da criação literária, Earl Miner (1995) aponta expressamente a ortodoxia hegemónica dos padrões culturais do Ocidente que acabam, inevitavelmente, por ditar ou concorrer para a configuração dos modelos de escrita de outras latitudes.

Entre outros aspectos, podemos constatar como se evoluiu da narrativa de transmissão oral à narrativa escrita, com todas as perdas e ganhos que aí se verificam, mas sobretudo com a consolidação de determinadas características estruturantes. São os casos, por exemplo, dos modos de narrar, das técnicas, dos procedimentos e das normas que delimitam um género determinado, seja ele o conto seja ele o romance.

Um aspecto a ressaltar nos textos dos autores moçambicanos, pelo menos os que aqui foram objecto de análise, é a oscilação entre uma ordem colectiva, reforçada pelos próprios acontecimentos e a vontade individual das personagens. Sintomaticamente, ou não, quando esta ordem individual se impõe invariavelmente ela representa transgressão. Transgressão de um sentido existencial que comunga valores, memórias, afectos, costumes, normas, sentimentos. Tal é o sentido comunitário, tal é o sentido da família enquanto comunidade de sangue. Assim o parecem indiciar as narrativas de Aldino Muianga, de Ungulani Ba Ka Khosa ou Borges Coelho.

Por outro lado, mesmo que essa transgressão não seja tão efectiva, ela indicia mais do que a tentativa de afirmação da vontade individual, a questionação do que existe de mais perverso e aniquilador no sentido comunitário e familiar da existência. Tais são os casos de “Saíde o Lata de Água” de Mia Couto, como de “Rami”, em Paulina Chiziane.

moz5.jpgConclusão

Dificilmente se pode contornar, em relação às artes africanas, em geral, e à literatura, em particular, o impacto e a apelo inspirador dos contextos em que ela surge e que se tornam objecto de reinvenção. Tal facto poderá explicar, em parte, o papel interventivo e messiânico de que se armam os escritores não só para celebrar o mundo que recriam, mas também para o questionar, para o tentar corrigir, mas nunca para o recusar, na sua totalidade. 

Daí que o sentido comunitário que atravessa grande parte da narrativa moçambicana – afinal, a vocação da narrativa é a representação de totalidades – traduz uma espécie de nostalgia de uma herança existencial e patrimonial comum, uma espécie de paraíso perdido o que, em certo sentido, transforma em aspiração a reivindicação do papel da família como da própria comunidade em que as personagens evoluem.

No entanto, quer o pendor crítico quer as tonalizantes moralizantes que caracterizam o discurso literário desses autores inscreve-se no confronto desencadeado pelas transformações civilizacionais e culturais decorrentes da modernidade e do modo como ela formatou sensibilidades, racionalidades e padrões de vida. E é, pois, em contraposição às sociedades individualistas do mundo contemporâneo que, utópica e idilicamente, a sociedade comunitária, real ou imaginária, se institui como pano de fundo desta literatura. 

Mesmo quando nos confrontamos com a singularização dos seres e da existência na narrativa, essa mesma individualização parece corresponder mais à fragmentação dos valores, das percepções, das instituições e da sociedade, em geral, do que propriamente à legitimação e consagração de qualquer perspectiva mais subjectiva que caracteriza o mundo e a narrativa ocidental.

Não é, pois, por acaso que a família, afinal tão antiga como a própria humanidade, enquanto microcosmos social e comunitário, está tão presente em qualquer uma das narrativas que escolhemos para esta reflexão. Se em «O totem» de Aldino Muianga se reconhece um incontornável sentido moralizador da narrativa, com indisfarçáveis apelos à salvaguarda dos valores, das tradições e dos costumes, em «Aconteceu em Saua-Saua» de Lília Momplé há uma denúncia e uma condenação a uma ordem política e social insustentável gerada, por exemplo, pela dominação colonial.

Por sua vez, tanto nos contos de Ungulani e de Mia Couto, respectivamente «O exorcismo» e «Saíde o Lata de Água», como no romance “Niketche” de Paulina Chiziane, o que prevalece é a constatação da degradação de um conjunto de valores que põem em causa a dignidade do ser humano como um todo, mas sempre indissociável de uma dimensão social, de uma dimensão colectiva.

Condição que tem necessariamente a ver com a visão, ou as visões do mundo que subjazem esta arte primordial de retenção do fluxo de existência nas suas inumeráveis realizações. Se a narrativa moderna traduz superiormente a fragmentação e a solidão fundamental do sujeito produto da modernidade, na arte de contar dos africanos, mesmo debaixo da influência dessa mesma modernidade, subsistem motivações que resgatam uma envolvente e plurívoca ideia de totalidade. Isto é, o ser humano representado mesmo na sua dimensão mais íntima e subjectiva surge sempre imerso no poderoso manto da totalidade social.

Por conseguinte, quer por força dos apelos das vivências e da(s) oralidade(s) de que se tece o quotidiano de onde surge, quer pelo ainda marcante sentido comunitário de existência que evoca, a narrativa africana é uma alegoria da forma como a literatura constrói a totalidade seja ela nostálgica ou utópica, seja ela o devir de todas as imprevisibilidades e de todas as provações.

E é aí onde a narrativa de vocação africana afirma a sua peculiaridade. Ora recriando e repensando modos de existir de um espaço vital onde o ético, o político, o cultural, o religioso e o social se dissolvem numa amálgama em constante transformação, ora reiventando a própria tradição de narrar adicionando-lhe elementos únicos e, por conseguinte, emblemáticos.

Referências bibliográficas

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LEVINAS, Emmanuel (1988). Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70.
KHOSA, Ungulani Ba Ka (1990). «O exorcismo» in Orgia dos Loucos, 2ª ed. Maputo: Imprensa Universitária.
MINER, Earl (1995). «Estudos Comparados Interculturais» in Marc Angenot (dir.), Teoria Literária. Lisboa: Dom Quixote.
MOMPLÉ, Lília (2007). «Aconteceu em Saua Saua» in Ninguém matou Suhura, 4ª ed. Maputo: Edição da Autora.
MUIANGA, Aldino (2003). «O totem» in O Domador de Burros e Outros Contos. Maputo: Ndjira.
WIREDU, Kwasi (2004). «The moral foundations of an African culture» in P H Coetzee and APJ Roux,Philosophy from Africa, 2nd ed. Oxford: University Press.


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