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Falamos sobre língua, literatura e mais, com Carlos Quiroga, escritor e ativista cultural galego

120711_quiroga01Galiza - Diário Liberdade - Carlos Quiroga é um literato em contra-mão. Se a começos dos anos 80 a maioria dos escritores e escritoras galegas mostravam a sua rebeldia frente à imposição da grafia castelhana, hoje som poucos os que continuam a resistir a ordem estabelecida à base de talonário.


Ser escritor na Galiza sem renunciar à grafia histórica do galego implica nom ser reconhecido nem promovido pela mídia ordeira. Implica renunciar a concorrer a quase a totalidade de prémios literários do País que impõem como requisito utilizar a grafia espanhola para o português da Galiza.

Contudo, a fidelidade de Carlos Quiroga ao idioma galego levou-o a se aproveitar da sua potencialidade ao máximo. O autor da Terra de Lemos é o primeiro escritor da literatura galega cuja obra foi distribuída em massa em Portugal graças aos jornais Diário de Notícias e Jornal de Notícias. Foram mais de 100.000 exemplares desta obra da nossa literatura que chegaram ao público leitor luso.

Diário Liberdade - Como chegou o romance Inxalá a gerar tanto interesse no país vizinho?

Carlos Quiroga– Não creio que se deva falar de 'tanto interesse', pois pode parecer que foram os milhares de leitores que reclamaram a obra! Foi editado, sim, por segunda vez e numa coleção de clássicos universais, fato aparentemente espetacular, mas seguramente com algo de casualidade por trás. No processo que levou o livro a colocar-se em condições disponíveis para isso, participam elementos sociológicos e de acaso, insisto, o que não significa negar as suas qualidades ditas literárias. Mas até poderiam ter pesado mais fatores como tamanho e ambiente do relato, e mesmo certo desprendimento do autor. Para historiar esse processo haveria que remontar ao Periferias de 99 (que antes de ter sido publicado no Brasil tinha chamado a atenção em Portugal), mencionar o pedido de um romance novo por parte de uma editora lusitana, e passar pelo prémio Carvalho Calero prévio na Galiza para Inxalá. Percorrido esse caminho, o livro editou-se em Portugal e colocou-se em condições de acontecer-lhe a edição estival com jornais. Mas podia não acontecer-lhe, e isso teria sido o mais lógico. Desconheço exatamente os motivos, imagino que a empresa intermediária da publicação queria inserir alguns autores vivos e no meu caso não houve exigências. Poe e Eça e Conrad e Tolstoi e os outros são magníficos, mas sempre os mesmos. Talvez ficassem bem títulos mais frescos, que estivessem em condições de responder ao perfil de uma Biblioteca de Verão. Em todo o caso, a explicação de um 'interesse' desses sempre é complexa.

DL - Em Portugal, comercializado desde 2008 pola QuidNovi, tem um título mais longo, Inxalá, espero por ti na Abissínia. Por que esta mudança?

CQ– A editora não gostava do título primitivo, que era o simples. Eu tinha aceitado uma revisão do texto a partir da edição original em norma AGAL por destinar-se ao público português –agora que há Acordo assinto de tudo nessa tendência, tempo e espaço haverá para melhorar e subverter criativamente o acordado. Tinha aceitado tal revisão, talvez necessária ainda que mais profunda do exigível nalgum ponto, mas resistia a mudar o título com que já tinha sido editada obra, apenas Inxalá. Cruzamos alguns correios, discutimos, e finalmente alcançamos a conciliação no acréscimo explicativo que propus: Inxalá, espero por ti na Abissínia. Depois, durante a feira do Livro de Lisboa, aproveitei a resposta de uma pessoa à que assinava o livro, sobre os motivos de interesse-se pela obra, para reforçar diante da responsável da QuidNovi o meu critério sobre o título. Ela acabou por admitir o acerto quanto à proposta inicial: os leitores gostavam de Inxalá e chegavam a interessar-se pelo romance por causa da palavra. Para a edição dos jornais, o certo é que não houve discussão alguma e colocaram pacificamente o título simples que eu tinha defendido.

DL - Inxalá é uma história cosmopolita cujo desenvolvimento decorre entre a Europa e África. Galiza, Portugal, Etiópia, Eritreia... som alguns dos países que aparecem na novela. Que significam estes países para Carlos Quiroga?

CQ– São geografias íntimas por vários motivos. A casa de Lisboa, na Damasceno Monteiro, também é o ponto de observação do 'Minarete Sul' em GONG, correlato do 'Minarete Norte' compostelano. Há várias personagens e vivências lisboetas dos meus tempos de doutorando lá, e outras projeções para a África que também coincidem com A Espera Crespuscular, e tudo está ligado à Galiza. Quanto à Etiópia, com centenares de línguas, com uma simbologia mítica na aventura de exposição doutros mundos que iniciaram os portugueses para a Europa, a lendária Abissínia com a portentosa Lalibelá lavrada nas rochas, com a mística descendência do rei bíblico e da rainha de Sabá, exerce um atrativo especial. Tenho algum fascínio por esse país, como tiveram os rastafáris que colocaram naquele império milenar jamais colonizado a sua terra prometida. Mas todo este ambiente também se relaciona com outras partes complementares da história que permanecem inéditas. Isso para além de que eu possa levar talvez no sangue algum resíduo ancestral de antepassados árabes, aqueles que chegaram aos confins da Galiza e levaram os sinos da primitiva catedral de Compostela, e por tal motivo me chamem estes horizontes!

DL - Além deste cosmopolitismo a questão identitária galega também é abordada através do personagem principal, um médico galego que trabalha em Lisboa e que nom gosta de ser tratado de espanhol. Acha que esta teima identitária que temos muitos galegos bate com essa outra noção de cosmopolitismo?

CQ– Não creio que alguns tenhamos obstinação particular, creio que quando sabemos e tomamos consciência do que somos temos apenas uma afirmação natural. Ter uma identidade de regra ignorada e ameaçada, como é o caso da galega, provoca a sensação de insistência no assunto pela nossa parte, quando a teimosia é do outro lado. Um alemão que fosse tratado constantemente de francês acharia normal, deixaria passar...? Não, diria naturalmente que quem assim o trata esta errado, que era bom aprender como são as coisas. Certo que uma nação sem estado está em piores condições para afirmar-se com essa naturalidade, mas admitir e afiançar a origem no individual é um modo de ultrapassar a submissão no coletivo. Por outro lado, sou dos que pensa que afirmar a identidade não é contraditório com abominar de fronteiras, e quando digo 'sou galego, não sou espanhol', não estou querendo dizer que queira pôr-lhe a perna por cima ao espanhol, quero dizer que este retire a sua da minha identidade, que o mundo é grande e temos problemas ecológicos comuns, mas que não ajuda apagar origens, línguas e identidades para impor outras. O cosmopolitismo não é uma monocultura, antes ao contrário, é um conhecimento plural e tolerante em que afirmar-se escocês ou galego resulta lógico e natural. E, ainda, não será necessário recordar que na identidade galega resistem as nascentes da língua portuguesa, cujo horizonte planetário é bem conhecido: só desde o local se é universal, mas é que o nosso local tem uma larga via de saída ao mundo, diretamente entre essas 5 ou 6 línguas mais faldas do planeta.

DL - Nesta obra o protagonista é comparado com Rimbaud. Que pouso há do escritor francês na obra do senhor?

CQ– Rimbaud é o poeta mais fulgurante dos tempos modernos, mas não sinto diretamente uma radiação literária dele sobre mim. De resto, a intenção de Inxalá não ia "no trilho de Rimbaud", como afirmou o Jornal de Letras em 2008. Dá-se uma coincidência de paisagens e geografias, porque as mesmas que viu e pisou Rimbaud vê e pisa o protagonista, com um século de diferença. Mas a Abissínia, e Rimbaud, vieram realmente depois de o coração deste romance estar já a palpitar. O paralelismo era inevitável ao percorrer os mesmos horizontes, mas tanto ao protagonista de Inxalá como a mim, para dizer toda a verdade, o que mais nos fascina de Rimbaud é a sua desistência da escrita, o seu abandono aparentemente prematuro, e o seu lançamento humano ao desconhecido. Partilhamos às vezes essa tentação, esse cansaço da luta e das explicações e dos parcos resultados. Como já escrevi num texto para uma feira do livro, 'De ter nascido noutra parte ou noutra circunstância, seria mais autotélico da escrita, colocaria na arte um fim em si mesmo, negaria-me seguramente a estar na feira, porque o sucesso comercial é um inimigo a combater, o risco de se ser devorado pelo mesmo é sério; Seria partidário de uma limitação voluntária da produção, cuja raridade deve caminhar a par de elevados padrões de qualidade; Seguiria o exemplo paradigmático de Rimbaud, pois, como ele, cumpre decidir voluntariamente escrever menos ou mesmo deixar de escrever.' Já tenho pensado muito em decidir isso. Mas no mesmo texto também afirmava que algo assim não pode permitir-se um reintegracionista hoje na Galiza, pois quem defende uma ortografia lusógrafa para o galego tem certo dever de ocupar territórios e de mostrar perspetivas. No reintegracionismo há uma responsabilidade histórica, e algum sucesso comercial é imprescindível para mostrar caminho a toda uma sociedade. Por isso, no meu caso, Rimbaud é ainda um exemplo impossível, ainda que nesse romance possa seguir-lhe os passos.

120711_quiroga02DL - Para além da bem sucedida Inxalá tem publicadas muitas outras obras. Entre elas Periferias (1999), também Prémio Carvalho Calero de narrativa, A Espera Crepuscular (2002), O Castelo da Lagoa de Antela (2004) Prémio de Teatro infantil na Mostra de Ferrol-Terra em 1988, publicado na Itália em galego-português e italiano ou Venezianas, última obra tirada do prelo em 2007. Pode adiantar-nos em que está a trabalhar o senhor agora?

CQ– Há dois livros acabados, desde há algum tempo. O primeiro é Na Demanda do Horizonte, correspondente à parte pendente do projeto chamado Viagem ao Cabo Nom. É a fase da exploração prometida num princípio, que corresponde precisamente a saída, percurso, viagem propriamente dita, que toma aí as formas dos quatro pontos cardeais, com paisagens concretas (ao Norte a Noruega e a Finlândia, atravessando a Europa, ao Sul as serras de sede da Península Ibérica, e, enfim, a Itália saudosa dos anos oitenta pelo Leste, o Atlântico aberto e sensual pelo Oeste), intercaladas pelas vozes dos dois 'autores' enfrentados em A Espera Crepuscular, que colaboram em deixar apenas anotações intervalares sobre imprescindíveis apetrechos para a viagem, e tudo isso numa estrutura espiralar. É um livro feito e refeito várias vezes, de alguma raridade, como os anteriores do mesmo projeto, e que portanto terá saída difícil. O segundo livro acabado partilha a mesma dificuldade, e não só. Chama-se Daniel no Império do Ar e é um retrato poético do Brasil, na forma de uma espécie de novela de cavalarias, texto e fotso. O título (provisório) tem a ver com a exposição O Sorriso de Daniel, promovida pelo Arquivo da Emigração Galega com o objetivo de apresentar a Galiza ao mundo. Participei nisso organizando uma mesa no Memorial do Imigrante de São Paulo (12/06/2007), em coincidência com a exposição itinerante do mesmo nome. Nela eram apresentados painéis fotográficos que retratam a identidade e diversidade cultural da Galiza e suas manifestações. Entre os trabalhos, a estátua do profeta Daniel no Pórtico da Glória da catedral de Santiago de Compostela –considerado o primeiro sorriso esculpido em pedra na Europa medieval. Estava também Daniel Castelao, um dos mais sólidos esforços para construir a identidade cultural e política da Galiza. Daniel no Império do Ar, no entanto, tem a ver com todas as viagens –até a data– que realizei ao Brasil, colocando por pano de fundo a sugestão e reconhecimento da fala galega no Quinto Império pessoano, o Império da Língua Portuguesa, que de algum modo representa hoje esse país continental. Um texto inicial coloca em Santiago de Compostela a miragem do relato (não se trata estritamente de poesia, mas o relato é sem dúvida poético) "transmitido" por uma gigantesca pedra em forma de cabeça de cavaleiro medieval, situada nas traseiras do monte Pedroso que domina a cidade. A seguir, na esteira das viagens reais aludidas, o percurso brasileiro adota o roteiro das andanças de um moderno e aéreo cavaleiro andante (este o Daniel do livro), sintonizado tanto por tom como por referência a clássicos lances dos livros de cavalaria, para retornar de novo à terra e acabar petrificado no monte Pedroso –de algum modo como guardião da língua... Enfim tudo isso é tão estranho que talvez ninguém queira ler. No que estou a trabalhar agora, por falta de certezas sobre o seu resultado, não vou adiantar nada, apenas assegurar que é mais convencional, que se liga ao Inxalá, e que se trata de romance, realmente dois.

DL - De quais dos seus livros está mais orgulhoso?

CQ– Tenho ternura especial pelo primeiro, aquele GONG editado ao amparo da Fundaçom Artábria, e que hoje está disponível de graça na rede, na página deles. Tem um caráter miscelâneo e recolhe já inclinações que se veriam amplificadas mais tarde. E foi realmente o livro não que me obrigasse a escrever, porque isso faço desde que tenho memória, mas sim a tomar responsabilidades no sentido de publicar. De resto, todos os livros são motivo de orgulho, e não apenas por mim: para além do esforço criativo que está por trás, no caso do reintegracionismo há um custo material suplementar para editar, contra o lucro, o prémio ou o subsídio, há trabalho e empenhamento, e os livros dos reintegracionistas são motivo de orgulho por manter viva uma orientação, uma causa e uma identidade.

DL - Quais considera as suas principais influências literárias?

CQ– Sou professor de literatura e vem de longa data uma ampla 'contaminação' de influências várias. Como tentei resumir noutra entrevista, deve haver um lado inconsciente onde se escondam todas as obras e autores da cultura em espanhol que a educação escolar e uma licenciatura em filologia hispânica me deixaram, incluindo a literatura latino-americana; e deve haver um lado mais consciente, amplo e perdurável, procedente da licenciatura e um doutoramento em filologia galego-portuguesa, que abre para a vertente lusófona, em que trabalho há anos. Sem por isso deixar de frequentar autores e obras de outras culturas, mortos e vivos. Sem deixar de reconhecer que até livros maus e revistas alimentam, às vezes melhor, a criação própria. Tem-se dito que tenho algum Pessoa à vista, e admito, mas até se tem visto Pessoas (porque sabem que dediquei a ele uma tese) onde já é outra coisa que está por trás. Enfim, seria enfadonho enumerar nomes, a lista pode ser dilatada dependendo dos motivos. Meti-me a uma tentativa naquele texto mencionado, uma espécie de autopoética solicitada pela Revista Eletrônica de Estudos Literários de Vitória, em 2009, que até recolhe a arenga da feira, de modo que remeto para lá pacientes e curiosos:

http://www.prppg.ufes.br/ppgl/reel/ed05/arquivos.htm.

DL - Numha entrevista para o PGL sublinha o seu interesse polo setor do audiovisual. Quais som os realizadores e filmes favoritos do senhor?

CQ– Houve uma altura em que dediquei tempo e esforço a essa vertente. Cheguei fazer o que os amigos (muito amigos) chamavam de 'curtas', e cheguei a dirigir um curso de verão na área do cinema. Foi uma progressão posterior à da fotografia, que também me tomou com força muito antes do advenimento do digital –para além do seu uso com a literatura, chegou a ter certo protagonismo fora dela, em revistas e até livros alheios, por exemplo no México, às vezes em meu nome e outras com pseudónimos. O uso da imagem, parada ou em movimento, em silêncio ou com som, é algo fascinante que causa um fascínio imediato. É um tiro. Foi precisamente a avalancha, saturação, contaminação visual, que o digital provocou, que me apagou aquele interesse por usar o audiovisual. Num desses livros inéditos atrás mencionados, aparecerá algo como isto: 'Se eu, que escrevo, tivesse um milhão de dólares tentaria fazer um filme, não escrever. Mas seguramente faria falta mais do milhão de dólares. Mas seguramente já seria velho para aventura de filme. Claro, num filme poderia fabricar açúcar de efeito rápido. Mas nada como o efeito lento do açúcar de um livro. Infinitamente poderoso. Como um veneno. A gente pode sair de um filme surpreendida, mas de um livro a gente pode sair transformada. Só de um livro.'

Quanto a realizadores e filmes, ocorre-me mencionar Stanley Kubrick e os seus exercícios estéticos que ao mesmo tempo apresentam temas e imagens que mexem perduravelmente na cabeça. Até as suas cenas de violência são estilizadas como coreografias elegantes. A Laranja Mecânica, 2001 -Uma Odisseia no Espaço, apesar de filmes com 40 anos às costas, continuam a mexer. Mas a lista poderia ser também aqui enorme. No género de ficção científica, onde escritores, argumentistas e realizadores propõem perspetivas dos tempos que hão de vir, é onde me ocorrem de imediato títulos imprescindíveis: Alien, Blade Runner, Matrix. Talvez seja neste bloco onde mais sedução ache, e onde menos nos de terror e no musical, mas em geral tenho um apetite amplo, que aceita perfeitamente western, suspense, policial, comédia, drama, guerra, aventura, documentário, erótico. Na lista não deveriam faltar citas orientais, Kurosawas mas também outros mais modernos (o delicado Desejando Amar, o bom Clã das Adagas Voadoras, esse assombroso Poesia, do coreano Chang-dong Lee), para além de centenares de maravilhosos filmes hollywoodianos.

120711_quiroga03DL - O DL é um jornal lusófono. Entre os nossos leitores há brasileiros, galegos, portugueses, angolanos... Que obras das literaturas de expressom galego-portuguesa recomendaria a este heterogêneo público?

CQ– Sempre resulta complicado. Rosalia de Castro é incontornável por motivos óbvios, e dela talvez Folhas Novas, que tem uma edição da AGAL presentável para esse público. Depois, Cunqueiro, em vários títulos, por exemplo o Simbad, ou o Merlim e família. Leiam também A Esmorga, de Blanco-Amor. Se acrescentam uma pitada de Castelao (o central Sempre em Galiza ) e outra de Carvalho Calero, na sua poesia ou melhor nalguma coletânea de estudos sobre a Língua Galega, terão uns primeiros pratos significativos. Alguns desses livros possuem já edições divulgativas ou lançadas para a Lusofonia, mas nem todos.

DL - Numha entrevista a este jornal a escritora Raquel Miragaia afirmava que hoje existe menos preconceito entre o público galego com o reintegracionismo. Acha que é assim mesmo?

CQ– Também concordo. O reintegracionismo é hoje mais visível, mais respeitado e mais vigoroso nas camadas jovens da sociedade galega do que há uns anos. O mau é que essa sociedade em geral perde a sua galeguidade com uma velocidade mais vertiginosa.

DL - O movimento reintegracionista tem indubitavelmente crescido nos último anos. Centros sociais, organizaçons políticas, juvenis, estudantis, feministas, desportivas, culturais... e em geral o tecido associativo galego está em maior ou menor medida influído polas teorias da unidade lingüístico galego-portuguesa. Contudo, semelha que no ámbito da literatura galega nom tem mudado muito. Por quê?

CQ– Poderia tentar resumir em três fatores, ainda que deve ser mais complexo. O primeiro é que o âmbito da literatura escrita ocupa uma super-estrutura conectada aos poderes e interesses dominados pelo isolacionismo e espanholismo, e continua opaca ao vigor de base anteriormente mencionado, que é recente e demora na ascensão. O segundo é que a favor desse âmbito continua a trabalhar uma censura indireta causada por mercado, prémios e reconhecimento social (os prémios continuam exigindo quase na totalidade a norma espanhola, as escolas continuam aplicando e exigindo a normativa isolacionista, os meios toleram e falam quase só dessa literatura domesticada). E o terceiro é um problema técnico: aos representantes desse âmbito falta uma formação que a eles parece prescindível, nas condições que estabelecem os dois fatores anteriores, e em todo o caso não estão dispostos a adquirir a capacidade técnica de escrita –pode-se continuar a escrever desde o espanhol e ter praça no pequeno olimpo local.

DL - O senhor tem afirmado que o único galeguismo que cabe e fica é o da resistência reintegracionista. Pode explicar esta afirmaçom.

CQ– No essencial está já expresso. Quero dizer que, ao mesmo tempo que o reintegracionismo ganha visibilidade e respeito, o galeguismo geral e a consciência de identidade perderam espaço, tamanho e legitimidade fora dele, até ao ponto que pouco fica de fora do reintegracionismo que possa chamar-se galeguista. O galeguismo que olha para outro lado no desespero de conseguir apoio de uma sociedade já desnaturada pelo castelhano perdeu o seu fundamento. Na Espanha o ditador morreu na cama e deixou tudo atado e bem atado, colocou um rei a suceder-lhe, e todo o seu aparato se redistribuiu num novo esquema que os próprios fascistas desenharam sem ajustes de contas e com a ampla condescendência e o perdão "democrático" dos políticos, e esse esquema obedeceu o galeguismo de primeira hora, também com uma escrita castelhana do galego. Continuar nessa obediência não pode representar hoje uma sociedade que se diga galega porque trabalha contra essa natureza. Por isso o único galeguismo que cabe e fica é o da resistência reintegracionista.

120711_quiroga04DL - A situaçom do galego, ou português da Galiza, é preocupante. Que medidas gostaria que fossem tomadas polas distintas administraçons e o movimento popular galego para inverter esta situaçom?

CQ– Tem corrido já alguma tinta e algumas medidas parecem consensuais e até se aparentam simples. Ver a televisão portuguesa na Galiza é tão difícil? Não, a técnica resolve de imediato, e continuar sem poder só se explica hoje por uma intencionalidade consciente. Ensinar português nas escolas é pecado? Não, e evitá-lo é também uma privação de possibilidades, num contexto que nos publicitam multilingue: por que esconder a esta sociedade que tem na mão uma das línguas mais faladas do planeta? Seriam duas medidas simples e baratas, porque existe a técnica e há professores, e os rendimentos seriam importantes. Muitos concordamos em que o intercâmbio cultural na lusofonia devia ser objetivo estratégico prioritário de todas as políticas institucionais para a Galiza não sumir, mas esta parece ser a intencionalidade das administrações. Longe de poder propor medidas para a melhora, parece que devemos acorrer a evitar as medidas que se aplicam para um seu deterioro ainda maior. Apesar de o monopólio castelhano continuar aqui maciço e até ir em aumento, como provam os vários jornais em galego que fecharam nos últimos meses, invoca-se com perversidade a liberdade para que o espanhol seja unicamente a língua veicular na escola. Neste contexto, pensar noutras medidas, a que já me tenho referido, como festivais de cinema lusófono, oferta turística com ênfase na língua, circulação das nossas músicas, trocas gastronómicas, bolsas para estudantes da comunidade lusófona, prémios literários conjuntos, convívio de escritores, encontros de software e programação, enfim, em lusofonia efetiva como objetivo estratégico prioritário dos Estados que devem colocar dinheiros para isso, e a Galiza com um comportamento mais entusiasta e soberano neste sentido, porque é quem está mais em risco, parece agora mesmo uma fantasia. E, mesmo na margem e com a falta de recursos habitual, mas com imaginação e entusiasmo, é o que está a fazer e propor o movimento popular galego reintegracionista, como se viu no último éMundial. Só se houver mudanças estruturais completas que permitam alargar estes modelos, só se este vigor chega a tempo de ascender às super-estruturas para mudá-las, haverá hipótese de sobrevivência da língua e da identidade.

DL - Recentemente está na crista da onda o debate sobre a necessidade de construir um ensino popular à margem do ensino público. Um ensino baseado na imersom lingüística semelhante ao que existem noutras naçons sem estado como a Bretanha, o País Basco, a Catalunha ou o País de Gales. Acha necessário e factível um ensino destas características na Galiza?

CQ– Talvez seja necessário, mas no quadro anteriormente pintado haveria que ser mais ambiciosos e não conformar-nos com um gueto escolar sem implicações de maiores. Emular uma Aliança Francesa para ensinar francês, um Centro Britânico para ensinar inglês, não devia desgastar as nossas forças e recursos se acreditamos que este território ainda não é estrangeiro para a nossa língua. Sem deixar de tentar mostrar as possibilidades nos centros de ensino público (e ainda neste ano participei nalgumas experiências, vendo como deixam uma predisposição positiva e um interesse por aproveitar a potencialidade da nossa língua), devem ser atacados os problemas que se acham no conjunto da sociedade mais do que no ensino em particular, para levar todo o corpo social a uma viragem. Mostrar ao sistema de ensino da Galiza, e aos seus profissionais, sem afastar-nos deles num gueto, o reforço ilusionante inestimável que temos, e que não tem qualquer outra língua peninsular das chamadas periféricas, e que está a ser escondido perversamente, tem que interessar a pais, docentes e até políticos de todas as cores. Isso se deveras se interessam pelo conforto presente e futuro dos escolares, das famílias, da sociedade.

DL- Descreva a Galiza dos seus sonhos?

CQ– Gostaria que todas as fronteiras do planeta caíssem, mas, se elas continuassem a estar, gostaria de uma Galiza independente que não tivesse a perna doutrem por cima, dificultando a vida e felicidade dos seus habitantes. Gostaria que estes não precisassem emigrar, como ainda acontece e como acontece a tantos povos oprimidos do mundo -já de postos, sonhemos a abolição da opressão, do abuso, do 'macarrismo' entre indivíduos e entre povos. Gostaria que esta sociedade descobrisse que tem uma língua útil e até mundial na sua mão, que está sentada sobre o que considera uma velharia de oculto valor, a sua comunidade com o português. Enfim, sonho porque me mandas, mas tendo para o pessimismo por natureza e porque levo algum tempo vendo tudo isto em volta. Em 2004 fui à Itália e levaram-me a um liceu onde fiquei alucinado ao descobrir que tinha estado um livro meu como leitura das turmas. Aquela noite sonhei que, no regresso à Galiza, um filho vinha da escola com um livro meu na mão porque lhe mandaram ler (e até ele os seus colegas tinham gostado, claro), mas ao acordar soube que nunca veria algo assim. Desde esse dia tornei-me um homem perigoso porque procuro esquecer o que sonho de noite e acordar-me só do que sonho de dia, ainda que isso seja mais pequeno. E é que acredito no que Lawrence da Arábia escreveu nos Sete Pilares da Sabedoria: os que sonham de noite, nos recessos poeirentos das suas mentes, acordam de manhã para verem que tudo, afinal, não passava de vaidade; mas os que sonham acordados representam já algum perigo, pois estão no caminho de realizá-los. O que sonho talvez seja mais pequeno do que antes me obrigavas a lançar –mas sonho-o de olhos abertos.


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