Os quatro acontecimentos são a ponta do iceberg do aprofundamento do machismo na nossa sociedade; talvez o mais grave tenha sido a contestação no começo do ano sobre a constitucionalidade da Lei Maria da Penha e dos dispositivos jurídicos que ela criou. O STF acertou em julgar constitucional a lei, porém o investimento mínimo na implementação de casas, abrigos, centros de referência e na capacitação dos profissionais do judiciário para acolher a mulher em situação de violência ajuda a perpetuar a impunidade e os altos índices de feminicídio no país. Criar a lei e não ter verba para implementá-la, seja no âmbito estadual ou federal, está longe de garantir a vida das mulheres no país e, na verdade, acaba apenas sendo uma fachada bonita para os graves problemas de opressão de gênero. A lei é importante, mas a real implementação dela sem cortes de verba é essencial para o combate da violência machista.
É óbvio que figuras como Jair Bolsonaro e Edilson Rumbelsperger Rodrigues – juiz de Sete Lagoas que chamou a Lei Maria da Penha de monstrengo – são alegorias extremas da face conservadora do Brasil. Seria mais fácil combater o racismo, homofobia e misoginia se todos os atores que reforçam estas opressões fossem tão claros como estes dois exemplos. Infelizmente, não o são e as opressões específicas acabam disseminadas pela sociedade justamente pela dissimulação de diversos setores: o famoso “toma lá, da cá”. Quão mais fácil seria lidar com gente assumidamente fascista como os agressores do militante LGBT Guilherme Rodrigues? O problema é mais profundo, pois, quando não se trata o combate às opressões como parte fundamental do programa político a ser disputado na sociedade, vemos aberrações como defender o direito dos LGBTs e ao mesmo tempo apoiar um dos principais expoentes contra a criminalização da homofobia para a presidência do Senado - como foi o caso das senadoras Marta Suplicy e Gleisi Hoffman que apoiaram o senador e oligarca José Sarney nas eleições à presidência do Senado, mesmo havendo uma candidatura à esquerda e ligada ao debate de combate às opressões.
O combate às opressões é tão ideológico e difícil de fazer que até mesmo programas que deveriam ajudar no combate à mortalidade materna retrocedem na discussão sobre a integralidade do atendimento à saúde da mulher – e mulheres não são apenas úteros reprodutores, precisam de atenção por conta de câncer de mama, pressão alta e diversas outras doenças. Ou seja, não basta apenas combater a violência no parto, que é assustadora, mas também acolher a mulher que não quer ser mãe ou que por algum motivo não pode, pensar em saúde para todas as mulheres e não apenas para as heterossexuais em idade reprodutiva. Neste momento, é cada vez mais difícil a resistência para manter os poucos direitos reprodutivos que temos. Seria, por exemplo, de extrema importância o Ministério da Saúde e o Governo Federal resgatarem a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, de 1983, e não voltarem para a lógica de saúde binômio mãe-criança, não pensando em política de saúde para mulheres violentadas e capacitação de profissionais que atendem mulheres em processo de abortamento – tudo para combater, no cerne da sociedade, o machismo.
Por conta dessas e de outras, estou plenamente convencida de que a luta feminista e antirracista são partes fundamentais de um programa político de esquerda no país, pois não dá para pensar ruptura social sem pensar na mudança de relações sociais e no perfil da classe trabalhadora brasileira, que tem sim cor e gênero. Não podemos mais nos valer apenas dos discursos quando vemos políticas públicas reforçando um lado – o mesmo lado de sempre – da saúde da mulher, quando não há verbas suficientes para implementação dos dispositivos jurídicos e sociais que salvariam nossas vidas. Não haverá revolução no Brasil se não for pensado junto com o socialismo o feminismo e o antirracismo.