Uma vez cumprida dita pena, seguia-se com a aplicação da segunda condena e assim por diante, de tal maneira que a aplicação de tal doutrina apresentava, às vezes, uma cadeia perpétua disfarçada. Mas, para além do dito, a aplicação que fazia o Estado da lei considerava a retroatividade da mesma, feito que o TEDH julga ilegal, ao tempo que conclui que o Estado Espanhol estava a vaziar de conteúdos os benefícios penitenciários levados a cabo mediante o trabalho e atentava contra direitos que assinara e que se recolhem no Convênio Europeu de Direitos Humanos.
O Reino de Espanha, o Estado Espanhol ou como se deseje chamar esta realidade plurinacional que ocupa um bocado da Península Ibérica, adoece dum profundo déficit democrático. Com diferença o ocorrido no vizinho Portugal, a Transição não levou a cabo a indispensável limpeza que cumpria. Hoje resultaria inadmissível para qualquer pessoa com uma mínima sensibilidade democrática que Angela Merkel ocupasse o seu posto nomeada por Hitler, mas se assume com naturalidade que o rei se ache no seu posto colocado (usa-se "colocado" como sinônimo de "assentado") por um ditador que chegou ao poder mediante um golpe de estado. Para encobrir essa eiva de origem da nossa "democracia", articularam-se duas estratégias: a primeira consistente na aplicação duma férrea censura, que durou décadas, sobre tudo o que atingisse a instituição monárquica; a segunda, baseada na elaboração duma ficção que afirmava que a constituição foi votada livremente por toda a cidadania e dita constituição incluía, justamente, a escolha da monarquia como sistema político. A aplicação estrita da primeira conduziu a que for impossível qualquer crítica ao rei e a sua família, mália não ser aquele nem esta, como agora se está a ver diariamente, uns modelos de ética, decência ou austeridade.
O referendo constitucional, pola sua parte, teve todas as características dos referendos franquistas. Em primeiro lugar, polo resultado: um 94,17% de votos a favor é um dado inconcebível num regime democrático e, de fato, resulta muito interessante a comparação desta quantidade com o 95,06% com o que Franco ganhou o referendo da lei Orgánica de 1967, dados ambos muito semelhantes. As consultas democráticas fogem de resultados esmagadores pola simples razão que as sociedades não são tão homogêneas, como prova que, apenas uma década depois, o referendo da permanência na OTAN deitou só um 52% de votos favoráveis. Em segundo, porque a constituição alicerçou sobre os resultados eleitorais do 15 de Junho. As pessoas que lembramos aqueles dias, sabemos que o 15 de Junho de 1977 e o 6 de dezembro de 1978 votou uma população apavorada, porque, ao pé do tema Libertad sin ira, existiu uma campanha soterrada, de boca em boca, de rádio em rádio, de jornal em jornal, que cochichava à orelha que se não ganhar a UCD o 15-J ou não triunfar o SIM no referendo, a perspectiva de nova guerra civil era cousa real. Num espetacular lapsus freudiano, a canção que razoava segundo o esquema "guardate tu miedo y tu ira" —por tanto, existía medo— consideraba, aliás, que "hay libertad y, si no la hay, sin duda la habrá" —portanto, não havia liberdade—. Assim, empregando as palavras daquele tema de Jarcha, averiguamos as condições nas que aquele tempo se moveu: com medo e sem liberdade.
Finalmente, sabemos que esta constituição estava redigida, na teoria, por esses que chamavam "pais" em quanto que, no quarto adjacente, a cúpula militar introduzia frases ou suprimia artigos que não eram do seu agrado e por isso esta constituição, da que se afirma que constitui um modelo, encarrega —caso único na Europa— o Exército a defensa da integridade do Reino de Espanha. Naquela Transição que fora (garantem) a admiração do mundo, Fraga Iribarne, um dos pais da mesma, afirmava que "lo único que faltava era que Galicia tuviese una Carallalitat (sic)" o qual não lhe impediu a ele próprio chegar a ser presidente da dita Caralhalitat, por outro nome, Junta de Galiza. A desvergonha humana às vezes desconhece fronteiras.
Por se não chegasse com isso, as forças políticas que emergiram dos comícios do 15 de junho de 1977 foram previamente "escolhidas", de tal maneira que, duma maneira calculada, o Partido Comunista legalizara-se apenas dous meses antes, em abril, depois de renunciar às críticas à monarquia e entregar uma parte importante do seu capital político, em quanto o partido herdeiro do Movimento dispunha de dous. Como recompensa pola sua atitude o PC desfrutou da sorte que outras forças de esquerda não tiveram, entre elas o nacionalismo galego, que concorreu ás eleições numa plataforma eleitoral improvisada, porque os partidos galegos seguiam a ser ilegais. Eram esses os instantes nos que o PSOE cumpria um século de vida, celebrando-o com um slogam: "Cien años de honradez" que, imediatamente, mudou nas bocas populares em "Cem anos de honradez e quarenta de férias". Alguns anos mais tarde, quando a primeira vaga de corrupção alagou os despachos dos chamados socialistas, o slogan mudou de novo nas bocas populares: "cem anos de honradez, e nem um minuto mais".
Com a limitação que o espaço exige, estas são a situação e o contexto que houvemos de navegar. Uma transição política conduzida por gentes que vinham da ditadura e que, infelizmente, contaram com a deserção da suposta esquerda (PSOE) e da esquerda que combatera a ditadura (PCE). Uma transição brutalmente interrompida polo golpismo no 23-F, uma transição que inseriu para sempre a dúvida nos nossos ânimos cada vez que lembramos a frase que o rei pronunciara por volta da 1:15 da madrugada do dia 24 de fevereiro de 1981: "a partir de este momento no me puedo volver atrás". E um perguntaria: e até esse momento, Majestade, sim? E ainda mais: Majestade, não deveria você pedir perdão por ter jurado os Princípios Fundamentais do Movimento franquista, só três anos antes de jurar a Constituição?
Com os vimes que se usaram por volta de 1977, não resulta difícil compreender que o cesto obtido mostra as eivas e os buracos que o presente nos permite ver. A luta contra a esquerda vasca conduziu à doutrina de que "todo era ETA" e assim se produziram feches de revistas e jornais, detenções de pessoas que não participaram em atos delitivos, e, também, uma loucura chamada apologia do terrorismo que permitiu condenar não atos, mas simples opiniões, rompendo leis elementares da democracia. A repressão foi o motor que pulou a ação de sucessivos governos, a não consideração do cárcere como um lugar de reinserção social, mas de natureza estritamente punitiva, a utilização de certas (não todas) associações de vítimas como eixos fulcrais duma política não democrática, a patada na porta, e, no horizonte de hoje, a tenção do Partido Popular (que adjetivo mais paradoxal: popular!) de incrementar as sanções econômicas a quem grave ações policiais, a quem se manifeste em certas condições, em resumo, a quem decida não calar nem sofrer em silêncio a injustiça que toda crise traze baixo o seu braço. Por isso a doutrina Parot não é mais que um elo de toda a longa renque de cortes de direitos fundamentais. Uns cortes que, devagar, vão alargando o seu rádio de ação, ameaçando com atingir todo o setor da cidadania que olha para os despejos, a redução de salários e o incremento de horas, em quanto banqueiros e grandes empresários multiplicam a réu os próprios ganhos. A doutrina Parot apenas é um sintoma do estado da questão, que não é outra cousa que a questão do Estado, e a sua queda o enunciado preciso da miséria da doente democracia que vivemos.