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270815 galeciaGaliza - PGL - [Fernando Venâncio] Existem numerosos verbos exclusivos de Galego e Português. Até este momento identifiquei 195


Sabia você que o verbo mergulhar é exclusivo dos falantes de Galego e de Português? Pois é verdade: enquanto nós dizemos que ‘mergulhamos’, os demais utentes de línguas latinas chamam-lhe coisa diferente. Assim, um castelhano dizzambullir, um francês plonger, um italiano tuffarsi.

O nosso verbo mergulhar tem origem decerto remotíssima. Está relacionado com o latim mergulus, nome da ave que chamamos mergulhão. Alguém, um dia, provavelmente na Galécia, achou adequado chamar merguliare à acção de imitar o que essa ave faz bem: afocinhar na água. E assim ficou.

Como este, existem numerosos verbos exclusivos de Galego e Português. Até este momento identifiquei 195. Este número limita-se a verbos ‘correntes’ (não inclui termos peculiares de profissões ou domínios do saber), e todos eles são usados pelos actuais falantes de Português. Digo ‘de Português’ porque nem todos esses verbos gozam, hoje, de igual circulação na Galiza.

Exemplos dessa exclusividade galego-portuguesa são verbos formados a partir de substantivos também eles exclusivos, como alicerçarberrarfaiscarorvalharpeneirarteimar. Ou feitos a partir de adjectivos só ‘nossos’, como afoitar-selevedarvadiar.

Noutros casos, os verbos formaram-se por prefixação dum substantivo, exclusivo ou não. Assim se obtiveram, por exemplo, adiaramochar (ou amouchar), assanharengaiolarensarilharenveredaresboroaresmagar(maga é o resíduo da uva), espalharesvoaçarrebolar. Ou por prefixação dum adjectivo, como adoentar,aviventarrequintar.

Existem, porém, verbos de cuja origem só temos vagas suspeitas, ou mesmo nenhuma informação, os casos deafastaramarfanharbarafustarfungarmurchar e vários outros.

Origem latina, certa ou suposta

Dos nossos verbos exclusivos, numerosos são aqueles que, como mergulhar, tiveram uma origem latina. Daí nos vieram, entre outros, acenarajeitaraturarbradarcheiraresmorecerfurarpularsalgarvoltar.

Noutros casos, as nossas formas verbais são efectivamente únicas, mas derivaram por via popular de verbos latinos que, na sua forma ‘culta’, compartilhamos com outros idiomas. Assim, temos conchegar (e ‘complicar’),espreitar (e ‘explicitar’), magoar (e ‘macular’), poupar (e ‘palpar’) e outros mais.

Seja dito à parte: existem, no Português, alguns verbos de origem latina, chegados por via popular, que o Galego globalmente desconhece. É o caso de espatifarlabutar evasculhar. Em contrapartida, existem muitos mais verbos galegos nessa situação, que o Português nunca possuiu. Até este momento, e sem uma pesquisa sistemática, identifiquei 14, entre eles acougaragarimar,decatar-seengadirlatricarrebuldar. Este tipo de latinismos não entrou, é claro, no meu cômputo geral. Por outro lado, uma tão nítida predominância galega de latinismos ‘populares’ exclusivos é uma excelente prova material (se necessária fosse…) de que a língua se formou na Galécia.

Por fim: em não poucos casos, a origem latina dos nossos verbos é tão-só suposta. Isto é, tudo parece indicar que, no latim, circularam formas que originaram verbos já presentes na língua medieval, mas jamais tais formas ‘latinas’ se viram documentadas. Por outras palavras: um bom número de verbos ‘latinos’ galego-portugueses são autênticos fantasmas. Contam-se nessa situação abalar(dum ‘advallare’?), convidar (dum ‘convitare’?), estourar (dum ‘extaurare’?), estragar (dum ‘stragare’?) oupendurar (dum ‘pendulare’?). Trata-se de nada menos que 28 verbos, num universo de 73 que relacionamos com o latim. Como explicar semelhante realidade?

Existem três explicações. A primeira é esta: o latim da Galécia era muito mais peculiar, mais individualizado, do que se supõe. A segunda explicação: durante a Alta Idade Média, prosseguiu uma latinização particular da Galécia. Ambas as explicações são aceitáveis. Com efeito, desde a época romana, o território galego foi razoavelmente isolado, e socialmente estável, favorecendo o desenvolvimento, no idioma, de traços fortemente individualizadores.

Mas existe, para esses verbos fantasma, uma terceira explicação, mais especulativa, mas nem por isso menos admissível. Baseia-se na «Teoria da Continuidade Paleolítica» dos italianos Alinei e Benozzo (www.continuitas.org). Na matéria que nos importa aqui, ela parte do princípio de que o Latim, a língua do Lácio, era só uma de tantas variedades dum ‘Itálico’ espalhado pelo Sudoeste europeu. Assim sendo, o que chamamos ‘Latim da Galécia’ seria tão-só uma variedade desse idioma mais vasto, o Itálico. Teria, pois, havido uma variedade ‘itálica’ da Galécia, naturalmente aparentada com aqueloutra, mais prestigiosa, do Lácio. E, sobretudo, tudo se terá passado há uns bons milhares de anos, muito antes de aparecer, no Noroeste peninsular. o primeiro cidadão romano.

Que significa tudo isto?

Significa, primeiro, que a quantidade de materiais que Galego e Português detêm em exclusivo é imensa. Sim, limitámo-nos aqui aos verbos. Mas não são menos os substantivos e os adjectivos que só Português e Galego possuem.

Demonstra isto que são a mesma língua? Estamos, aqui, seguramente perante um dado de primordial importância. A resposta que darei adiante é de teor histórico, talvez o único viável, já que, num cenário ‘sincrónico’, isto é, actual, «a mesma língua» é um conceito político, ideológico, e não linguístico. Quanto tempo serão Português e Brasileiro ainda «a mesma língua»? Existe, tanto no Brasil como em Portugal, gente responsável que ousa fazer a pergunta.

A segunda constatação é a da espectacular permanência de tantos e tão diversos materiais galego-portugueses em duas comunidades linguísticas separadas politicamente desde há 900 anos. Isto tem duas implicações. Por um lado, esse acervo tem de ser antiquíssimo. Por outro, terá havido entre as duas comunidades, ao longo dos séculos, um mútuo enriquecimento lexical. Esta segunda implicação, sendo segura, é de mais difícil comprovação. Já quanto à antiguidade, estamos em terreno firme.

Na realidade, para a imensa maioria destes materiais, só um cenário é concebível: eles existiam, e circulavam, séculos antes de Portugal surgir. Isto significa que eram, de pleno direito, galegos, concebidos e socializados num território, a Galécia Magna, que incluía menos de um quinto daquilo que, muito depois, ia tornar-se ‘Portugal’.

Sejamos francos: por muito que os historiadores portugueses do idioma, e os portugueses em geral, possam lamentá-lo, é através do Galego que o Português se liga ao Latim. Por outras palavras: o Português é ‘língua latina’ em segundo grau, e o Galego em primeiro.

[A distorcida perspectiva, a este respeito, vigente em Portugal foi objecto do meu artigo «O passado galego do português», no recente número 206 da revista Grial. Aí lembro como a etiqueta Galego-Português para a língua medieval foi criada, por volta de 1900, para não ferir, com o nome de Galego, o orgulho português].

Não resta dúvida. O estado de língua que os primeiros escritos documentam revela (sob uma ortografia caótica) tamanha solidez e tamanha complexidade, tanto na gramática como no léxico, que só uma conclusão se nos permite: este idioma, naquilo que o distinguia de qualquer outro, estava definido e consolidado séculos antes de Portugal existir.

Fica, então, a pergunta: são Galego e Português a mesma língua? Sim, são-no, no sentido de que este idioma foi criação galega, depois adoptada pelos portugueses no seu novo Reino, porque… era o que havia, e funcionava bem.

Gerações mais tarde, os portugueses, esquecidos desta história, deram ao idioma o seu próprio nome,Português, e durante séculos fizeram quanto puderam para afastá-lo das variedades do Norte. Foi a chamada ‘desgaleguização’ do Português, um processo que se deixa descrever em pormenor, e que levou, por exemplo, à galopante multiplicação do ditongo ão, a marca mais antigalega, ao reduzir três terminações etimológicas a uma só. Em suma: historicamente, o Português é um fenómeno tardio.

Retórica e trabalho

Em diversos, e até opostos, quadrantes culturais galegos, sublinha-se a conveniência de aproveitar tudo aquilo que, por felizes circunstâncias, o Português conservou da riqueza comum. O princípio é óptimo, mas importa ir além da retórica e do espontaneísmo.

Há um trabalho a fazer. Não pode deixar-se esse processo ao deus-dará. É indispensável identificar os materiais e, depois, traçar estratégias para pô-los a render. O contacto com o português, particularmente no ensino, é importantíssimo. Mas o proveito a obter dele supõe uma planificação linguística, e um acompanhamento persistente.

 

Este artigo (afora a última secção) é a versão ‘jornalística’ do texto que apresentei, em finais de Julho passado, em Santiago de Compostela, em

Gallaecia III: Congresso Internacional de Linguística Histórica. O título da comunicação era «Verbos exclusivos do Galego-Português moderno».

Nota talvez importante

Quis fazer este exercício dentro dos critérios mais apertados. Os referenciados 195 verbos constam todos do Dicionario da RAG ou do Dicionario de Xerais (neste, como entrada independente).

Fora destes dois âmbitos (e lembrei-o na palestra em Santiago), são de uso em Galego bastantes outros verbos exclusivos do nosso idioma. Eles figuram abundantemente quer no Dicionario de Dicionarios de Antón Santamarina, quer no Tesouro Informatizado da Lingua Galega (TILGa). São exemplos abenzoar, aliñavar, borrifar, cantarolar, compartillar, enguizar, esgueirar, findar, resmungar, sobexar.


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