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270811_julietaBolívia - Diário Liberdade - Um companheiro do coletivo galego do Diário Liberdade esteve neste mês de agosto na Bolívia, conhecendo o movimento popular e entrevistando Julieta.


Julieta é uma veterana ativista feminista, que hoje participa nas Assembléias Feministas Comunitárias e no sólido e referencial coletivo feminista Mujeres Creando Comunidad, sediado na cidade boliviana de La Paz.

No país andino desenvolveu-se nos últimos anos um processo político e social de máximo interesse para os movimentos de esquerda do mundo inteiro. No Diário Liberdade quisemos saber qual está sendo o papel da mulher e do movimento feminista nesse caminho, como chega a hoje e qual o seu futuro.

Encontramo-nos ao meio-dia no Bar Carcajadas, um local feminista da cidade de La Paz, onde Julieta nos explica as ideias mais importantes sobre o seu coletivo antes de começarmos com a nossa entrevista.

'Mujeres Creando Comunidad'

No ano 1990 nasce Mujeres Creando, "um coletivo que nos anos 90 tentou contribuir para as lutas revolucionárias do nosso povo: construirmos um movimento feminista e revolucionário". Em 2001 Mujeres Creando sofreu uma crise política que deu lugar a dous coletivos: dum lado Mujeres Creando Comunidad, na qual Julieta Paredes participa hoje; do outro uma ONG que, na opinião da entrevistada, "deixou de ser revolucionária, autogestionária, anarquista... do nosso ponto de vista deixou de ser revolucionária para se pôr ao serviço de um grupo".

Mujeres Creando Comunidad procura, nas palavras de Julieta, "concetualizar a articulação de classe, raça e género, construindo um novo feminismo". Explica que a sua atividade tem dado origem a uma série de propostas "aprovadas pelas organizações sociais" que o governo "teve que aprovar" depois, em relação às políticas públicas para mulheres.

Para Julieta e as Feministas Comunitárias, a luta pela emancipação feminina deve se entender no conjunto das lutas sociais e políticas, e não do ponto de vista do feminismo institucionalizado das ONG e dos governos. Ainda, considera o colonialismo muito presente na Bolívia: "Não necessitamos um espanhol para sermos colónia, há um colonialismo nas mulheres".

Nova ideia de feminismo: 'Somos feministas enquanto isso for a luta das mulheres em qualquer lugar e tempo'.

Julieta apela à independência dos processos feministas latino-americanos a respeito dos ocidentais, trazendo novas ideias sobre o trabalho feminista na Bolívia: "Hoje a Comunidade Mujeres Creando e as Assembleias do Feminismo Comunitário construíram esta nova corrente de pensamento que não é a do feminismo ocidental. Lemos e aprendemos, mas não somos filhas da Europa."

E continua: "Chamamo-nos 'feministas' porque isso tem um conteúdo histórico que queremos entrar a discutir. Nós somos também feministas mas, que tipo de feministas? Que é que procuramos como feministas?". A ativista explica que "entramos a debater o que pode ser o feminismo como conceito. Se o feminismo for entendido como a luta das mulheres europeias ou norte-americanas, então nós não somos" -diz Julieta, "Mas se entendermos como feminismo a luta das mulheres em qualquer lugar do mundo e tempo da história, então podemos sim nos considerar feministas porque a nossa memória vem a nós de antes da invasão colonial espanhola".

Julieta conhece, contudo, as lutas feministas galega e portuguesa. "Eu estive na Galiza, um lugar lindo com gente linda. Conheci o trabalho das Maribolheras e das pessoas arredor deste coletivo, igual que da organização Solidariedade Internacional (SI), que não tem nada a ver com a SI da Bolívia, que é muito ruim. Na Corunha tivemos uma série de discussões nas quais nos entendemos muito bem. Também conheci Lisboa."

Diário Liberdade - Qual é a realidade da mulher e do feminismo na Bolívia dentro do contexto latino-americano, e qual a crítica e diferenças com os feminismos europeus ou norte-americanos?

Julieta Paredes: Não cabe falar de crítica, há que respeitar as lutas. É como se tu viesses cá criticar as lutas revolucionárias bolivianas!

Quanto à situação das mulheres na Bolivia, é muito parecida com que temos noutras partes do mundo, como Portugal ou Brasil: por toda parte do mundo estamos fodidas! Tem as suas diferenças mas, por exemplo, a Espanha é um dos países mais violentos agora. A violência existe em toda parte, embora nuns lugares esta seja visibilizada e noutros não, outras coisas são tópicos. Em toda parte temos lutas por fazer e em toda parte a situação é fodida.

Em concreto, na Bolívia foi se conseguindo uma visibilização das mulheres, mas falta ainda a presença propositiva e autônoma das mulheres. Ainda há uma dependência organizativa das organizações dos varões. Nós, como feministas comunitárias, estamos trabalhando para conseguir a autonomia organizativa e política.

A América Latina e o Caribe vieram desenvolvendo uma contestação a partir do início dos anos 90. Foi também uma denúncia de um tipo de feminismo que foi institucionalizador, que é de classe média-alta, acadêmico e que não responde aos problemas mais sentidos da sociedade, das mulheres, e não responde os problemas das mulheres migrantes, empobrecidas, das e dos jovens.

270811_bolivia02Este feminismo institucionalizado veio essencialmente via cooperação internacional e via políticas de equidade de gênero; e muito da mão na etapa neoliberal, e que funcionalizaram as mulheres conforme os "ajustes" econômico-estruturais do FMI e o Banco Mundial na América Latina durante os anos 90. As mulheres serviram de "colchão" econômico e social para estas políticas depredadoras das conquistas sociais que a classe operária do Caribe a a América Latina conseguiu a partir dos anos 20 e até a década de 50: reforma, direito à vivenda, à renda...

No entanto, nas décadas de 80 e 90 todas estas reivindicações são apagadas pelo ajuste estrutural, e passa-se a uma maior acumulação econômica nas mãos das transnacionais. Para isso, foi útil a massiva incorporação das mulheres aos trabalhos informais e clandestinos, e todo o feminismo institucionalizador das ONG, dos governos neoliberais e da cooperação internacional contribuiu para a realização dessas políticas predadoras. Foi com consignas como a equidade de gênero, a incorporação de 30% ou 35% de mulheres nos governos, com políticas como a de saúde materna infantil, como se as mulheres fôssemos só úteros...

No conjunto dos anos 90 deu-se um feminismo autônomo latino-americano que contestou essas políticas; e produz-se um confronto entre estas duas correntes, o feminismo institucionalizador e o autônomo. Porém, o feminismo autônomo latino-americano e no Caribe não consegue desenhar uma proposta política e social nem explicitar os termos de alianças com outros movimentos sociais. Essa é hoje a diferença hoje com o feminismo comunitário.

O Feminismo Comunitário nasce na Bolívia de um processo político de mudanças sociais, e tem uma proposta de sociedade, apresenta alternativas à conceção e a construção de um Estado, temos uma proposta política e social de alianças com outros movimentos sociais de mulheres, mistos e também de companheiros homens; e doutro lado fazemos propostas também no âmbito da gestão pública, planeamento e políticas públicas e sociais, etc...

Portanto, eu acho que hoje existe uma diferença entre os feminismos da América Latina e o Caribe e aqueles da Europa e os Estados Unidos, porque apesar de que há elementos feministas anti-sistêmicos em toda a parte, estes não têm tanto poder naqueles lugares quanto o feminismo institucionalizador, que também dirige a cooperação internacional, carecem de muita força. Na América Latina e o Caribe retomamos os encontros feministas em 1996, e hoje na Bolívia o Feminismo Comunitário constitui um lugar de proposta social e de atenção política e social. Os movimentos sociais não nos perguntam apenas o quê vão fazer as mulheres, mas sim como vemos o processo político. Não nos perguntam: "Bate em vocês seu marido? São discriminadas?". Não. As perguntas são: "Como alimentamos o processo político? Estão bem as políticas do governo?". Contudo, conversamos também, claro, sobre o machismo e a violência.

DL - Houve alguma mudança com a chegada do atual governo à Bolívia?

JP - A mudança verdadeira que houve foi a possibildade de tomarmos a história em nossas mãos. Na Bolívia, a partir do ano 2003, tem-se aberto um processo político muito esperançoso que nós queremos que seja um processo revolucionário. Fez-se o caminho para a nova constituição, que permitiu descobrir que podemos escrever uma constituição e que ela não é obra de um grupo de pessoas parecidas a deuses: desmistificámos o fato de uma constituição política no país e, como povo, dissemos: 'queremos refundar o país'.

Nós o que verificámos neste processo político de mudanças é que se pode vencer. Mesmo sendo um país pequeno, e apesar de que o sistema se apresente como qualquer coisa onipotente, grande e que não podes mudar, nós, homens e mulheres, demonstramos que isso é sim possível. E dessa constatação hoje tomamos um pulo muito mais forte, muito mais convocante, muito mais desafiante como processo.

Outro aspecto relevante é que a mudança é levada adiante por povos indígenas, e isso é uma coisa inédita em qualquer lugar do mundo. Hoje temos o orgulho de que nosso irmão e companheiro Evo Morales seja o presidente.

Ora bem: nós não somos do MAS [Movimiento al Socialismo, partido governante], não somos do partido nem do governo, mas somos, sim, do processo político de mudança. Eu acho importante que se entenda que uma coisa é o processo político de mudança, uma outra o governo e outra o partido MAS. O processo político pertence a mulheres e homens do povo boliviano, e para nós e importante apropriar-nos do processo e não continuar delegando a um partido, a um caudilho ou a um governo as tarefas revolucionárias que são do nosso povo e das organizações sociais.

Hoje é essa a contradição, que deve ser resolvida fazendo propostas, não apenas criticando. O processo pertence-nos e portanto há que dizer 'há que fazer assim', se não, onde é que está o papel revolcionário de todos e todas? Então, nesse aspecto nos estamos fazendo propostas que são aprovadas pelas organizações sociais e que o governo teve que aprovar, e que têm a ver com as políticas públicas para as mulheres no quadro concetual do feminismo comunitário.

DL - Mas algumas mulheres das Assembléias Feministas Comunitárias (AFC) criticam, contudo, uma série de políticas que definindo-se como alegadamente antipatriarcais, são aplicadas de forma liberal e efetivamente patriarcal.

JP - Na verdade, dentro das AFC há diferentes sensibilidades. Na minha opinião, não há agora medidas antipatriarcais, mas sim um plano que tenciona fazer ações despatriarcalizadoras e propor uma metodologia: o mal chamado Plano de Igualdade de Oportunidades.

Há também decretos, como o proposto pelo irmão Evo que atribui a propriedade da terra às mulheres, que são quem ficam com as crianças. O que acontece é que há contradições. Não se está fazendo um trabalho político, e o que se pode fazer das Assembléias é reduzido.

Há elementos, como por exemplo, a Unidade de Despatriarcalização, que são completamente inovadores. São intituções dos nossos irmãos Aymara, mas feitas do ponto de vista indígena e que carecem ainda do elemento feminista, embora nos convoquem permanentemente as Feministas Comunitárias para o diálogo.

270811_bolivia04Estas unidades estão compostas maiormente por homens indígenas, que mesmo fizeram coisas como os matrimônios indígenas, que são patriarcais já que são casamentos que significam o domínio do homem sobre a mulher. O que aconteceu foi que estes irmãos meditaram o patriarcado na sua conceção de lutar contra o patrão Estado e patrão Igreja. Assim, estas iniciativas têm uma componente de rebeldia diante do Estado e a Igreja, mas não têm componente de rebeldia diante da imposição do homem sobre a mulher.

As mudanças não são assim de um dia para o outro, e há que continuar semeando.

DL - Critica-se, ainda, por parte de algumas mulheres das Assembléias, que continua a ser exercida uma violência estrutural sobre a mulher através da legislação.

JP - Como disse, nas AFC não todas pensamos igual. O que eu acho é que a violência estrutural não é apenas na Bolívia, mas de todo o sistema; não é que se estruture uma violência especial neste país ou que haja leis específicas para estruturalmente dominar.

A violência é o mecanismo através do qual são dominadas as mulheres no mundo inteiro, um dos instrumentos de domínio de um sistema patriarcal e de exploração. E esta violência, que também se dirige aos homens, se expressa de uma forma específica para as mulheres (relacionada com diferenças nos salários, o medo, o medo do estupro, a construção de gênero...) e de uma outra para eles.

DL - Qual deve ser o caminho do movimento feminista boliviano no curto e meio prazo e que resultados cabe esperar?

JP - Penso que deveríamos continuar aprofundando e alargando as bases políticas, conceituais e teóricas porque estas bases fazem uma ação prática, antes que "de biblioteca". Na medida que formos clarificando as bases conceituais (que é o patriarcado, que é a descolonização...) entendemos o que sentimos e sonhamos. Às vezes as teorias sociais marxistas e de mudanças sociais não serviram cá, porque a insurreição não se fez sob o mandato de um partido ou grupo de inteletuais. Foi uma insurreição do povo, com pessoas chegadas de diferentes âmbitos teóricos, que pusemos as nossas ideias na rua.

O processo político junta diversas ideias e conceições, sendo a do Feminismo Comunitário a única que vem do ponto de vista das mulheres, e as mulheres que estão noutros movimentos estão agindo desde as conceções dos homens. O Feminismo Comunitário discute com os homens as suas ideias.


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