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240811_entrevista_compos2Portugal - Diário Liberdade - O "Poema (A)Corda" nasce da vontade de gritar a poesia entre as gentes, musicando mensagens de liberdade e humanidade.


Simbiose perfeita do exorcismo e da catarse de duas artes – a música e a poesia – em todas as vertentes e experimentações possíveis. Através de ambientes musicais e poéticos alternativos, tem ganho contornos distintos: performativos, políticos, populares, pedagógicos, etc.

Iniciado em 2009 por João Mendes de Sousa (Montemor-o-novo) e Nuno Mangas-Viegas (Tavira), dois companheiros do curso de línguas e literaturas da Universidade de Évora com especial atenção para a criação artística, o projecto participou neste verao no Festival da Terra e da Língua que organiza a Fundaçom Artábria em Moinho de Pedroso, bem como em locais da noite galega, como o corunhês Faluya. Do Diário Liberdade aproveitamos a sua passagem pola Galiza para conversar com eles.

Diário Liberdade – Caros Nuno e João, em que momento resolveram iniciar o projecto? E qual era o objectivo?

Nuno Mangas-Viegas: Conhecemo-nos em Setembro de 2007, quando ambos entrámos para o curso de Línguas, Literaturas e Culturas da Universidade de Évora. A empatia foi imediata, e cedo começámos a trocar textos e experiências. Contudo, foi somente em Outubro de 2009 que decidimos começar a dar realidade a um desejo que até então não passava disso mesmo.

Mostrei um par de colectâneas de poesia minhas ao João, que as leu avidamente e começou a projectar possíveis formas de injectar música nalguns desses poemas.

João Mendes de Sousa: Desde o início do curso que o Nuno costumava partilhar comigo os seus poemas e desde logo senti uma grande empatia pelos mesmos. A carga simultaneamente humana e experimental da sua produção poética despertou-me uma vontade grande de participar ou contribuir com a mesma de alguma forma. Então, estando eu na altura numa fase produtiva com o colectivo PEBL em Montemor-o-Novo, decidi propor ao Nuno criar um projecto poético-musical. Ao Nuno pareceu-lhe bem e começámos os ensaios que, desde o primeiro, serviram para criar 80% do nosso reportório actual em menos de três ensaios. Julgo que o primeiro objectivo foi criar um projecto simples e minimal que criasse uma simbiose "perfeita" entre a poética e a composição musical alternativa e experimental. Logicamente, foi ganhando novos contornos. Da grande compatibilidade que surgiu entre as duas formas artísticas entre mim e o Nuno, começaram a criar-se empatias ideológicas. Hoje centramos a nossa grande admiração pela poesia e música combativa (ou de intervenção como costumam chamar-lhe) num complemento à nossa actuação e composição. Tudo para dizer que da estética surgiu também uma ética, ou mais que isso uma atitude mais afirmada e inconformista.

Nuno Mangas-Viegas : A nível pessoal, não escondo que sempre desejei dar a conhecer a minha poesia num suporte diferente do tradicional, ainda que não o recusando. Desta forma, encontrei com este projecto um espaço óptimo para divulgar a minha escrita, para difundir mensagens e para criar com o João uma linguagem conjunta forte e profunda.

O nosso objectivo primeiro foi criar, criar uma linguagem, criar uma expressão, testar novos caminhos por nós nunca antes sulcados, encontrar pontos de conexão entre a música composta pelo João e a minha poesia. Aos poucos, e fruto de variadíssimas vicissitudes, como o João já mencionou, o projecto começou aos poucos a ganhar uns laivos de combatividade e de intervenção.

DL – Nestes dois anos o "Poema (A)Corda" tem desenvolvido a sua actividade em 3 países: Portugal, Espanha e Galiza. Quais têm sido as experiências nos concertos e em que espaços têm sido desenvolvidos?

J.M.S. : Em Portugal actuámos em diferentes contextos: os concertos em Montemor-o-Novo com o colectivo PEBL - colectivo "contracultural" com quem organizávamos ciclos de concertos de divulgação -, a experiência com associações culturais em Montemor e Évora, a convivência com o Bibliocafé "Intensidez" também em Évora. A recepção foi diferente nos diferentes meios, mas nem sempre muito satisfatória a meu ver. Ao mudarmo-nos para Cáceres na Extremadura, por questões académicas, fomos com um grande fervor cultural e artístico, com grandes ideias de difusão e criação que infelizmente ficaram pela metade. Descobrimos uma cidade numa espécie de depressão identitária e social – fruto também do enorme investimento que a sua candidatura a "Capital Europeia da Cultura" obrigou, e que acabaram por não conseguir vencer -, com bares pouco receptivos a actividades (essencialmente porque a deputação controla a cultura e o turismo e não fornece condições funcionais e administrativas para um crescimento cultural alternativo que Cáceres merecia ter), enfim, portas quase impossíveis de abrir. Conseguimos ainda assim dar dois concertos no Café-Teatro "La Machacona" (bar mítico da cidade de Cáceres), onde tivemos a oportunidade de experimentar muitas coisas diferentes, tanto a nível performativo como ideológico, acabamos por descobrir novas capacidades com o projecto.

N.M.V. : Em Cáceres tivemos a felicidade de conhecer a Teresa, leitora do Instituto Camões em Cáceres, que confiou no nosso trabalho e nos abriu as portas para uma série de concertos, em parceria com o já mencionado Instituto Camões, nalgumas Escolas Oficiais de Idiomas da Estremadura, bem como na Feira do Livro de Cáceres. De todos estes locais, e ainda que reconheça que o nosso habitat natural seja nos pequenos bares e nos tascos, apraz-me sublinhar os concertos / palestras que desenvolvemos nas E.O.I. de Cáceres, Don Benito e Plasencia, para públicos bastante heterogéneos quer em termos de idades, quer de gostos e formação. Nas E.O.I. tentámos conciliar aquilo que é o repertório, chamemos-lhe, habitual do projecto com momentos de conversa e exposição de dados e informações sobre poetas portugueses, sobretudo Fernando Pessoa, de quem escolhemos alguns poemas para serem declamados e envoltos em música composta pelo João. Ou seja, foram actuações com forte componente didáctica.

240811_faluya2O nosso concerto na Feira do Livro de Cáceres também foi interessante, uma vez que conseguimos dar nova vida aos "Poemas Possíveis" de Saramago, autor escolhido pela organização para ser comemorado e celebrado, com uma maratona de leitura, nesta edição da feira.

J.M.S. : Sim, e nesta parceria com o Instituto Camões encontrámos uma nova aptidão e um novo motivo para a nossa actividade. Ao lidar com gentes interessadas na língua portuguesa, essencialmente por gosto e realização pessoal, sentimos na pele a capacidade que a poesia e a música têm de criar laços entre culturas, gentes, trocar conhecimentos e experiências.

Também em Cáceres, conhecermos o Alberto Pombo da banda metal galega "Avante!", que foi nosso professor de História e Cultura Galegas na Faculdade de Filosofia e Letras de Cáceres, e que nos mostrou, a pouco e pouco, a realidade galega. A experiência aqui, na Galiza, está a ser espectacular. Encontrámos aqui um elo de ligação excepcional com a causa nacional galega. A nossa presença cá, bem recebida e apoiada, está a ser uma experiência muito boa para o projecto, e para nós enquanto seres humanos conscientes.

N.M.V. : Para já ainda só realizámos dois concertos neste país, um para o Festival da Terra e da Língua, organizado pela Fundaçom Artábria no Moinho de Pedroso, Narón; e outro no Bar Faluya, na Corunha. O segundo, porque mais íntimo e emocional, foi para nós bem mais marcante. Gerou-se um clima de irmandade e fraternidade fantástico. Do alinhamento deste concerto constava, por exemplo, "Penélope", poema de Díaz Castro, "Longa Noite de Pedra" e "Tempo de Chorar" de Celso Emilio Ferreiro e a canção "Achegate a Mim Maruxa", famosa entre nós pela versão de Zeca Afonso. Enfim, sentimo-nos em casa...

DL – O vosso projecto poético tem mostrado especial sensibilidade para com as lutas dos povos oprimidos e são comuns as referências à repressão que a Galiza sofre por parte do Estado Espanhol, quer no plano político, quer no linguístico. Como tomaram consciência do problema nacional galego e que têm feito pela divulgação do mesmo?

N.M.V. : Em Portugal há uma manifesta falta de informação relativamente à realidade galega. Confesso que eu próprio tinha muito pouca informação. Contudo, conhecemos em Cáceres o Alberto Pombo, bem como vários outros professores galegos, como o Diego Bernal, o Maurício Castro ou o Emílio Cambeiro, entre outros. Com todos eles, mas principalmente com o Alberto começámos a mergulhar no tema e confrontámo-nos com essa realidade, com a postura e atitude castradora e repressiva que sofreu e sofre o povo galego por parte do governo central espanhol, bem como com a falta de consciência e de identidade de certas facções galegas. A pouco e pouco fomos acrescentando novas informações e apagando aquelas que já tínhamos mas que estavam erradas. Decidimos então que o nosso projecto poderia ter uma palavra a dizer e tornar-se um veículo mais para a difusão e para a denúncia dos autênticos crimes contra a liberdade, contra a expressão, contra a integridade física e moral por parte do estado espanhol para com o povo galego, sua língua, sua cultura e sua história.

J.M.S. : De facto o contacto com o companheiro Alberto dos "Avante!" e com todas as pessoas que temos vindo a conhecer desde que chegámos à Corunha tem-nos sensibilizado cada vez mais. Desde que me lembro que o nome Galiza ecoa no meu coração, embora a barreira do imperialismo da imprensa e do capitalismo tenha estado no meu caminho desde logo. Com os estudos tenho tido acesso a informações que vão confirmando a sensação de irmandade. A origem comum remonta do galego-português, a raiz cultural, a música, a poesia, tudo tem despertado para uma consciência cada vez mais activa. A desinformação vai caindo aos poucos junto com a barreira antes levantada. Tanto eu como o Nuno decidimos usar as nossas "armas artísticas" para mostrar este despertar nos nossos corações. Quanto à divulgação, acreditamos que é uma urgência tomar consciência das coisas do ponto de vista filológico, científico, para depois dar conta da panorâmica actual das coisas, conhecer lutas e objectivos, prestar apoio a uma cultura que transporta o berço da nossa.

N.M.V. : Sim, e uma vez neste ponto, enquanto portadores de conhecimento de campo, temos agora o compromisso, o dever e a responsabilidade de informar e espalhar este conhecimento que temos vindo a adquirir. Do boca-a-boca à internet, passando pelos nossos concertos, todos serão meios válidos para o fazer...

240811_corda2DL – Segundo a vossa experiência, qual o conhecimento existente no vosso país acerca das lutas nacionais existentes no Estado Espanhol e/ou noutras latitudes? Que acham que se deve fazer para acordar a solidariedade para com estes casos?

J.M.S. : Qualquer assunto que venha de Espanha é um assunto frágil, na generalidade, para um português. O preconceito não fundamentado de ambas as partes é persistente – a não ser talvez num meio académico, ou nas relações europeias e comerciais. De qualquer forma, no meio de tanto "ódio" generalizado, o conhecimento em Portugal sobre as lutas nacionais é, segundo o meu ponto de vista, uma miséria. Qualquer informação que temos é a mesma que qualquer meio de comunicação de massas informa, uma noção contraditória, uma noção castradora de qualquer luta independentista, que não informa mas sim repele. Na generalidade nós não temos uma noção, nem panorâmica, do que se passa no País Basco, do que são os Países Catalães, ou a Galiza, etc. O país português enquanto entidade está, a meu ver, demasiado embebido na tarefa de ser europeu – Espanha é apenas um outro concorrente, um rival histórico, um país com dificuldades administrativas por causa "daquela coisa das autonomias". É lógico que há de haver certas camadas que têm uma noção ampliada, seja por experiência pessoal, seja por conhecimento geral político e social da realidade no Estado Espanhol. E para acordar essa solidariedade necessária, neste momento em que todos corremos um risco cada vez mais afundado de perder a nossa identidade e o nosso papel no mundo enquanto seres humanos livres, seria, em primeiro lugar, necessário que essa camada de gente que tem informação se relacione, se comunique, se organize, em prol de uma divulgação e de um apoio maiores. É certo que a coisa está complicada para Portugal, mas cada vez mais acredito que se começarmos por saber o que se passa à nossa volta e reatarmos relações com as nações oprimidas ainda estamos a tempo de nos reencontrarmos, ter força para mudar a direcção que o império capitalista nos impõe a todos.

N.M.V. : A primeira barreira a ultrapassar, a meu ver, são os meios de comunicação, que desinformam, encobrem e deturpam a realidade. Os meios de comunicação lusos, os de massas, estão demasiado comprometidos – qual pacto de não agressão – com o estado espanhol. "Comem todos da mesma gamela", como dizemos nós. É preciso fazer a divulgação em Portugal de fontes como o Diário Liberdade, que tentam contar a realidade nua e crua, sem pudores nem receios. Creio que uma boa forma de conseguir informar sobre a realidade galega, neste caso, é formar em Portugal um Comité de Solidariedade para com a Galiza.

DL – Como filólogos que são, e tendo vivido já na Galiza temporariamente, qual a vossa posição a respeito do debate linguístico existente na Galiza?

J.M.S. : Como algo recente para mim vejo, desde logo, a situação um pouco fragmentada e complicada. É certo que, por um lado, existe já uma norma estabelecida, mas também é certo que essa norma aparenta fugir tanto do castelhano como do português. O isolacionismo é, neste momento, o cenário ideal para a direita liberal, é o cenário que instalará na língua e cultura galegas uma existência fantasma. Apesar de todos os esforços que os defensores dessa mesma norma têm realizado, não me parecem suficientes para negar que o castelhano tem um papel cada vez mais absorvedor – parece-me que neste momento não se trata apenas de diglosia, senão de uma aglutinação do castelhano sobre o galego. Por outro lado, a proposta reintegracionista apresenta-se lúcida e com fortes possibilidades para um futuro soberano da Galiza. Para uma pessoa de fora pode parecer confusa a situação filológica na Galiza devido aos contornos políticos que a acompanham, mas é impossível ver a língua desconectada da política, uma vez que é pela língua que tem sido dominado o território galego por parte do Estado Espanhol em várias fases da história. Pessoalmente tenho claro que o português tem o seu berço no galego, naquilo que se dominou de galego-português e que, tendo havido mais do que um momento de interrupção e opressão frente à língua e cultura galegas, no momento de sua reconstituição normativa, dever-se-ia estudar a evolução da língua portuguesa em comparação com os textos medievais, de forma a calcular como teria evoluído o galego se não tivesse sofrido a enorme opressão e influência do castelhano como língua dominante. Recorrer ao castelhano parece-me aceitar a escravidão que o mesmo propõe – mas estas questões são e serão frágeis, parece-me.

N.M.V. : Concordando com o que o João já disse, e não querendo alongar-me demasiado com esta resposta, porquanto teríamos de nos espraiar por toda a história da língua galego-portuguesa, por estádios concretos da opressão castelhana na Galiza, pelos Séculos Obscuros – "Plano de Doma e Castração" – até à actualidade, passando obviamente pela Guerra Civil e pela "longa noite de pedra" franquista, direi apenas que a legitimidade histórica, factual e cultural da língua galega é, a todo e qualquer nível, incontestável. A historiografia espanhola já fez o que fez com o Reino da Gallaecia, negando-lhe existência, validade e importância. Creio que é tempo de colocar um fim a esta postura fascista, castradora e opressora.

Ora, sendo que é inegável a contaminação castelhana que a língua galega sofreu durante séculos, e isso verifica-se não só na norma que é hoje ensinada nas escolas, mas também nalguns falantes mais velhos, creio que o papel dos neo-falantes é importantíssimo no ressuscitar da língua tal qual ela deve ser. Neste sentido, e esta é a minha humilde opinião, julgo que faz todo o sentido a reaproximação a Portugal – que não estando tão susceptível a tal opressão e influência, preservou muito daquilo que foi o nosso idioma, e simultaneamente evoluiu noutro sentido – para executar essa recuperação de um idioma que o estado fascista espanhol tudo fez para apagar. Indo directo ao assunto: o reintegracionismo é o caminho mais natural, o mais lúcido e sensato. É a via que faz mais sentido filologicamente...

DL – A nível artístico (tanto como poética como musicalmente) que metas têm alcançado e quais pretendem almejar?

J.M.S. : Enquanto músico o projecto "O Poema (A)Corda" despertou-me para novas formas de composição. Abriu-me os olhos para direccionar a minha tendência experimentalista para outros níveis. Poeticamente acabou por impulsar a minha produção poética e de escrita no geral. Ambos em sintonia fomentaram-me uma maior ambição artística e criativa, uma vontade de açambarcar todo o que há de "dizível" e "tocável" no mundo, digamos assim. Com tudo isto temos conseguido atingir diversos campos da arte que se calhar nem tínhamos pensado atingir: desde tocar em livrarias onde as estantes faziam sombra para a catarse colectiva que o concerto proporcionava; tocar em espaços distintos com públicos diferentes; roçar a pedagogia, divulgando simultaneamente a literatura e cultura lusófonas; expandir a crítica que fazemos ao plano performativo; e agora com a estadia na Galiza materializamos o nosso objectivo de focar o projecto também na sua vertente ideológica, acompanhando as lutas e eventos que têm fomentado a liberdade na Galiza.

N.M.V. : Este projecto já me deu tanta coisa boa... Em termos de escrita, acima de tudo, ajudou-me a tomar consciência dos vários ritmos que é necessário injectar num poema. Declamando um poema envolvido em música é mais fácil perceber onde um poema, ritmicamente, falha. Daí que tenha feito alterações a poemas que os tornaram mais fortes, mais incisivos.

A nível pessoal, espero brevemente publicar o meu primeiro livro de poesia. Creio que tudo o que já escrevi ao longo destes intensos oito anos já merece uma oportunidade. O que eu gostava mesmo era publicar um livro com a minha poesia em conjunto com um CD do nosso projecto. Mas enfim, não é fácil encontrar quem nisto aposte. Relativamente ao projecto "O Poema (A)Corda", creio que estamos no caminho certo, funcionando como veículo de divulgação poética e ideológica, voz de emoções, sentimentos e de mensagens sociais e políticas fortes e justas. Pode ser que ainda tenham de nos aguentar durante uns bons tempos...

Fotos: 1- Um instante da entrevista. 2- Durante a atuação no Bar Faluya, na Corunha. 3- No Festival da Terra e da Língua, em Narom.


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