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270111_polit_op_saoPortugal - Política Operária - [São José Almeida] É e foi vulgar ouvir dizer que Júlio Fogaça (1907-1980) foi expulso do PCP por ser homossexual.


Esta afirmação, ainda que nunca tenha sido escrita, embora seja um não-dito oficial, é ventilada como justificação para uma expulsão que ocorreu, mas não por este facto.

A homossexualidade de Júlio Fogaça é real e tão real que até está documentada pela PIDE. As polícias políticas portuguesas sempre foram muito zelosas do controlo da sexualidade, mesmo que isso não fosse utilizado como acusação. Tanto que a Inquisição portuguesa foi a única com jurisdição sobre o “pecado nefando”, deixando um vasto espólio sobre o que foi e o que se julgou ser a sodomia. Dizia eu que a homossexualidade de Júlio Fogaça está documentada, era uma verdade assumida à época e não dissimulada pelo próprio, dentro do que podia ser uma homossexualidade assumida nos anos 40, 50 e 60 em Portugal.

Não foi, porém, essa a razão da expulsão do homem que liderou a reorganização do PCP, nos inícios dos anos 40, que liderou o PCP nos anos 50 e que caiu em desgraça nos anos 60, depois de preso e expulso do PCP, quando Álvaro Cunhal, com quem disputou a liderança e o protagonismo interno, ascende a secretário-geral do partido.

Se a homossexualidade de Fogaça não foi a razão da sua expulsão – esta teria sido uma realidade se ele fosse heterossexual, aliás, como disse Ruben de Carvalho na investigação que fiz para o livro Homossexuais no Estado Novo: “Nem que ele fosse irmão gémeo de Álvaro Cunhal, teria sido expulso” – isso não impede que se perceba como ela foi usada contra si pelo PCP, depois da ruptura.

Ou seja, como, para justificar uma expulsão que aconteceu por divergência política, foi usada a hipótese de os cuidados conspirativos da clandestinidade comunista serem postos em causa pela vida amorosa de Fogaça e os encontros que mantinha com o seu companheiro de há anos Américo Joaquim Gonçalves. Como se os cuidados conspirativos não pudessem ser postos em causa e não o tenham sido também em encontros heterossexuais!

É esta precisamente a ideia que me traz aqui: explicar porque é que, na minha opinião e fruto do que investiguei sobre o assunto, o PCP não era (como não é hoje) nem mais nem menos homofóbico do que o resto da sociedade portuguesa. Também o PCP reage e usa a homossexualidade de Fogaça com o mesmo mecanismo do silêncio, do não-dito que era geral no início dos anos 60. A homossexualidade é algo que não tem dignidade nem para ser atirado como acusação a um inimigo ou a um adversário político.

E quando, em Julho de 1961, a revista clandestina do PCP O Militante publica a nota de suspensão da militância de Fogaça, fá-lo precisamente usando a insinuação, nunca dizendo o que não tinha dignidade de servir de argumento para acusar um adversário: “Não estando esclarecidos aspectos da conduta de Júlio Fogaça, que embora não digam respeito ao seu comportamento ante o inimigo, revestem gravidade, o Comité Central resolve suspender Júlio Fogaça do Partido até ao apuramento de factos e resolução posterior.” Seguir-se-á a expulsão. Isto quando, em Março de 1961, Álvaro Cunhal já fora eleito secretário-geral e começara a corrigir o “desvio de direita”, liderado por Fogaça.

Isto é assim não porque os comunistas fossem seres perversos e excessivamente homofóbicos, mas porque a construção da sociedade burguesa, assente no modelo de família nuclear, patriarcal, monogâmica, heterossexual e procriativa, destinada a enquadrar todos socialmente e a produzir mão-de-obra, tem como pressuposto básico a domesticação da sexualidade.

Enquadrada por uma nova moral social – muitas vezes identificada com o que vem a ser no século XX a pequena e a média burguesia –, a sexualidade passa a estar ao serviço da sociedade e a ter uma função assumidamente procriativa. Para isso, toda a actividade sexual que não tem esse objectivo é vista como desviante e anti-social e, no caso das relações afectivo-sexuais entre pessoas do mesmo sexo, baptizadas de homossexualidade, a conceptualização passa a ser a de uma doença e de um crime.

Crime estipulado na lei da mendicidade de 20 de Julho de 1912 – e que subirá ao Código Penal em 1954, só daí saindo em 1982 – e que é psiquiatricamente enquadrado como doença por uma escola de médicos inaugurada por Egas Moniz. É esta nova visão da sociedade que será imposta a partir do poder e que determinará a mentalidade social ao longo do século XX – vigorando ainda hoje em vastos sectores, que empurram os homossexuais portugueses para o gueto da estigmatização e da auto-estigmatização e que cobre a sociedade a partir dos anos 40, transformando a homossexualidade num desejo e num comportamento caracterizado em três grandes eixos.

Por um lado, o eixo da diferenciação social: numa sociedade classista, é lógico que as classes altas tenham um tratamento menos repressivo face a uma sexualidade vista como desviante, pois essa permissividade para as elites era genérica.

Por outro lado, o da diferenciação por sexos: a invisibilidade lésbica era uma realidade absoluta a partir dos anos 30 e até aos anos 70. As mulheres que amaram e se relacionaram sexualmente com outras mulheres sofreram a dupla estigmatização de ser mulheres e homossexuais.

Exemplo dessa invisibilidade é a forma como foi vista e tratada pelo poder, quer da PIDE e da ditadura, quer do PCP, a relação amorosa, que começou dentro de Caxias, quando ambas estavam presas na cela das mulheres, entre a dirigente do PCP Fernanda de Paiva Tomás (1928-1984) e a médica oposicionista, apoiante do PCP de Angola, Maria Julieta Guimarães Gandra (1917-2007). Uma relação que se desenvolveu aos olhos das guardas e das outras presas, mas que foi ignorada, não vista, olhada como espectral, como um fantasma.

E em terceiro, o eixo do não-dito, do silêncio, da exclusão pela omissão. O que não é dito, aquilo cujo nome não é pronunciado, não existe. Logo, a homossexualidade é, à luz da nova visão social, algo que passa a não ter existência, a não se dizer, a não ter dignidade de existir.

E se os homossexuais foram tratados, tal como os opositores políticos, como anti-sociais na lei e enquadrados por medidas de segurança pela República e depois pela ditadura salazarista, diversa era a dignidade com que ambas as categorias eram tratadas pelo Estado Novo.

Assim, se um preso político era homossexual, a sua vida sexual era investigada e documentada, só que tal não tinha dignidade para ser usado contra o adversário político. Isso não impediu, contudo, que os homossexuais temessem ser incomodados pela PIDE ou que agentes da polícia política não usassem a sua posição para chantagear homossexuais.

Daí que, mesmo quando o comportamento sexual desviante não é ignorado em absoluto e é usado contra o adversário – como foi o caso de Júlio Fogaça na sua última prisão – o processo por homossexualidade é autónomo e corre no Tribunal de Execução de Penas de Lisboa. No caso de Fogaça, o processo abrangeu também o seu companheiro, Américo Joaquim Gonçalves, que com ele foi preso nas ruas da Nazaré.

A sentença desse processo será lavrada e copiada para a ficha da PIDE de Fogaça: “Julgado em 6-4-962 pelo Tribunal de Execução de Penas de Lisboa, tendo sido classificado de pederasta passivo e habitual na prática de vícios contra a natureza, mas para ficar sujeito, durante cinco anos à regeneradora medida de segurança de liberdade vigiada, com início na data da sua soltura e cujo exercício se lhe limita através do íntegro cumprimento das seguintes obrigações específicas: 1) fixar residência nesta cidade, de que dará verdadeiro conhecimento à PJ, mas de onde não se pode ausentar sem prévia autorização deste tribunal; 2) dedicar-se ao trabalho honesto, com permanência, mas não mais à prática de qualquer vício contra a natureza; 3) não acompanhar cadastrados, antigos companheiros de prisão, pederastas ou quaisquer pessoas de conduta duvidosa; 4) aceitar a fiscalização da sua conduta pela P. J. onde tem de se apresentar todos os meses e em dias e horas que lhe forem determinados.”

O caso de Fogaça é, aliás, paradigmático de como o regime agia face à homossexualidade, reduzindo-a ao domínio da doença e da perversão, e não lhe reconhecendo dignidade sequer para estar ao lado de uma acusação política, se bem que não a ignorasse ou aligeirasse a sua repressão.

Como é sabido, Fogaça era um importantíssimo dirigente do PCP, com um papel central na produção da linha ideológico-política do PCP. E tinha atrás de si um longo currículo de prisões. Logo em 1935, foi preso e enviado para o Tarrafal, com José de Sousa, também então membro do Secretariado do PCP, e com Bento Gonçalves, secretário-geral entre 1928 e 1942, ano em que morre no Tarrafal, vítima de biliosa não tratada.

Libertado em 1940, lidera a reorganização a partir de 1940. É preso mais uma vez em 1942, sendo então também enviado para o Tarrafal, pelo que não participa no III Congresso, em 1943, o primeiro na clandestinidade que se realiza na Vila Arriaga, no Monte Estoril.

No Tarrafal, após a morte de Bento Gonçalves, dirige a Organização Comunista dos Presos do Tarrafal. Libertado em 1945, vê a sua “política de transição” derrotada por Cunhal no IV Congresso, na Lousã, em 1946. Depois da prisão de Cunhal em 1949, no Luso, Fogaça volta a determinar a orientação até ser preso, em 1961, sendo solto em 28 de Agosto de 1970, sob liberdade condicional, depois de dezoito anos de prisões (1935-40, 1942-45, 1969-70), oito deles no Tarrafal.

O processo da PIDE e os documentos que sobrevivem na Torre do Tombo relativos às prisões de Fogaça afirmam explicitamente que ele foi preso a 30 de Agosto de 1960, em conjunto com Américo Joaquim Gonçalves, que foi também detido “por ser seu companheiro”. De acordo com os documentos apreendidos e com o que está no processo, Fogaça usava o nome falso de Fernando Abreu Ramos. Já Américo Joaquim Gonçalves não tinha identidade falsa, era operário fabril e nascera a 29 de Julho de 1935, em Torres Vedras. Foram presos às 16 horas, “numa rua da vila da Nazaré”.

A busca que a PIDE faz à casa onde morava Américo Joaquim Gonçalves permite a apreensão de vários documentos, entre os quais duas cartas de um “Fernando”, ou seja de Fogaça, uma enviada de Vieira de Leiria e começava por “Américo amigo”, assinada “Fernando”, a outra enviada de “Monte Real”. O resto era panfletos de propaganda.

A PIDE fez um aturado levantamento da relação de ambos, o que prova que, apesar de indigno para acusar um adversário político, o assunto também não era digno de ser descriminalizado. Entre as testemunhas ouvidas, destaca-se o depoimento da senhoria do quarto onde Américo Joaquim Gonçalves vivia, de nome Cecília Augusta, que foi ouvida a 9 de Setembro de 1960 e que afirma que Fernando ia lá uma vez por semana, juntavam-se no quarto e falavam baixo e quando Américo Joaquim Gonçalves não estava, Fernando deixava um bilhete para marcar encontros.

A senhoria conta também que Américo avisou que ia estar fora no fim-de-semana em que é preso: disse que “ia para a Nazaré no dia seguinte com o ‘Fernando’ e com a esposa deste”. E está documentado no processo que a PIDE conhecia a morada de uma pensão onde os dois dormiam em Lisboa, bem como a forma como se conheceram em 1957 em Cascais, onde Américo cumpria o serviço militar – no tribunal, Américo dirá que foi em 1953.

Américo Joaquim Gonçalves é solto em 7 de Outubro de 1960 com uma caução de 50 escudos e termo de identidade e residência. Fogaça será julgado por homossexualidade a 6 de Abril de 1962.

No registo dos interrogatórios de Fogaça, o nome de Américo só é referido uma vez, mas de uma forma que mostra que Américo Joaquim Gonçalves contou coisas sobre a sua relação. A 20 de Janeiro de 1961, a PIDE questiona Fogaça sobre a sua participação numa reunião de partidos comunistas em Itália que começou a 21 de Novembro de 1959, alegando que “Américo Joaquim Gonçalves, a quem o respondente chegou a enviar do estrangeiro algumas lembranças, o fez para tomar parte na ‘reunião dos 17 partidos comunistas’, que teve lugar em Roma com início a 21 de Novembro daquele ano”.

A PIDE diz, aliás, que Américo Joaquim Gonçalves assinou sempre os autos e respondeu a tudo, enquanto Fogaça não. Mas no processo falta um documento fundamental, no auto dos interrogatórios iniciais de Américo Joaquim Gonçalves, as páginas 32, 43 e 57. Apesar disso é fácil de perceber pelos restantes documentos que este depoimento foi de quem falou e que a PIDE investigou o assunto, não o ignorou. Tanto que Fogaça foi condenado no Tribunal de Execução de Penas de Lisboa.

Já o caso da relação amorosa que nasce dentro de Caxias entre Fernanda de Paiva Tomás e Julieta Gandra é, por seu lado, paradigmático de como o lesbianismo era visto e tratado na sociedade de então. Ela nunca é referida nos processos de ambas, nem mesmo quando são castigadas isso é referido. Isto apesar de a relação ter existido dentro da cadeia, onde coabitaram mais de quatro anos e partilhavam a cela das mulheres com figuras do PCP como Maria Alda Nogueira, Sofia Ferreira, Aida Paulo, etc.

Fernanda é presa a 6 de Fevereiro de 1961 e ficará em Caxias até 19 de Novembro de 1970, sendo a mulher que mais anos seguidos passou nas cadeias da PIDE. Julieta é presa em Angola em 1959, entra em Caxias em a 8 de Novembro de 1960, sendo libertada após uma campanha da Amnistia Internacional como presa do ano, em 6 de Julho de 1965. Esta relação lésbica prolongar-se-á depois da libertação de Fernanda de Paiva Tomás até à sua morte em 1984, período em que viveram juntas.

O silêncio que se fez sobre esta relação depois da morte de Fernanda de Paiva Tomás e o silêncio que existiu em relação ao período da prisão são típicos do que é a condição de não-dito que caracteriza a homossexualidade e que é ainda mais estigmatizante no caso do lesbianismo, já que as mulheres homossexuais são duplamente estigmatizadas: enquanto mulheres cuja sexualidade é reprodutiva e para dar prazer ao homem e que por isso não têm prazer, logo duas mulheres não têm sexualidade juntas.

Sobre esta relação lésbica, vivida dentro e depois fora de Caxias, disse Teresa Horta, num trabalho que fiz para o Público quando da morte de Julieta Gandra: “Com o passar dos anos sobre a morte de Fernanda Tomás, a relação foi silenciada, mas as pessoas sabem, até porque criou celeuma na própria cela”. E prossegue: ‘Tinham uma afectividade imensa e uma solidariedade imensa entre as duas. Para fazer aquilo que elas fizeram, era preciso que houvesse uma grande coragem e um grande amor. Mesmo depois do 25 de Abril, havia silêncio à volta do assunto. Não por elas, que não escondiam. Mas, em relação à mulher, é mais difícil falar-se, não há homossexualidade feminina, porque não há sexualidade feminina’.”

E Teresa Horta chamava a atenção para o que esta relação comporta de limite: “Imagine-se o que é duas mulheres assumirem uma relação dentro de uma cela de uma cadeia da PIDE cheia de presas do PCP. É um acto de transgressão máxima, para mais porque são presas políticas do fascismo. Além da transgressão que as leva ali, há esta.”

O impacto dessa transgressão é documentado por Maria Eugénia Varela Gomes na entrevista biográfica que dá a Maria Manuela Cruzeiro, do Centro de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra. Aí Maria Eugénia Varela Gomes é explícita a criticar a relação de ambas, que assim se expunham perante a PIDE. Esta crítica foi reafirmada em declarações a mim num trabalho que fiz para o Público quando Julieta Gandra faleceu: “Era visível dentro da cela a relação das duas, escrevi porque é a verdade histórica.”

Uma “verdade histórica”, nas palavras de Maria Eugénia Varela Gomes, que coabitou com ambas na cela das mulheres, mas uma “verdade histórica” que se viu invisibilizada, que viu a sua dignidade negada, enquanto relação lésbica, pela PIDE, pelo PCP e até por muitas pessoas que foram amigas do casal.


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