Cleuber por meio de suas tiras desenvolve personagens e roteiros que refletem as nossas questões sociais e a nossa urbanidade. Leia a seguir uma entrevista exclusiva concedida por Cleuber ao site Meu Herói.
1 – Cleuber, o que há de Minas Gerais em seu trabalho?
Primeiramente a influência do próprio espírito de ser mineiro. E meus grandes mestres surgiram daqui, Henfil e Nilson. Sou apaixonado pelo trabalho deles é a fonte a qual eu bebo todos os dias. Depois acho que é a linguagem de costume que aplico nos personagens, do tipo: Uai, sô, bão, enfim... Em Minas, agente se sente um pouco distante de tudo, isolado pelas montanhas, acho que isso influencia também porque, no caso da minha série, Arroz integral, eles estão sempre tentando levantar voos mais altos, se sentem isolados, sem contato com as grandes massas dos centros nervosos do mundo.
2 – Quando começou seu interesse pelos quadrinhos, seja como leitor e desenhista?
Comecei a ler quadrinhos muito cedo, ainda estava fazendo o primário, eu era péssimo em leitura, então minha mãe percebeu que através das revistinhas eu poderia desenvolver melhor a leitura dai passou a me entulhar de gibis (hi,hi,hi). Quando comecei a desenhar já rascunhava paginas de HQ e não ilustrações soltas, isso quando tinha uns sete anos, me amarrava em fazer historinhas com sequência e tal. Sabe esse negocio de dom? poisé, desde pequeno, antes da escola, eu já rabiscava pra tudo quanto é canto da casa, então foi algo que aconteceu naturalmente, não me recordo de nenhum momento da minha vida que eu não estava desenhando.
Descobrir o quadrinho pra mim foi encontrar o tesouro, aí quando comecei a levar a serio o desenho senti uma forte capacidade de comunicação com as pessoas, e isso foi de grande valia, porque sempre fui o mais tímido da sala, não tinha capacidade de me relacionar de me enturmar, o quadrinho me ajudou nisso. Logo tinha um tanto de alunos à minha volta pedindo pra desenhar no caderno deles e assim fui me enturmando, me popularizando na escola e na sociedade. Depois desbundei geral, virei um capeta nas aulas, era figurinha carimbada na diretoria, fui reprovado umas quatro ou cinco vezes. Já no Colégio me tornei mais politizado, fundei Grêmio estudantil, fiz Abaixo-Assinado, batia de frente com a direção, me tornei membro do colegiado (...).
Essa parte do poder da comunicação, através dos quadrinhos, que me comoveu e me ensinou tudo que sei hoje. Ver as pessoas na rua te perguntar sobre o desfecho de tal historia é muito satisfatório, é legal ter essa relação com o leitor, ter intimidade com quem esta lendo pra mim é vital para meu trabalho, é o Pagamento. Esse negócio de você desenhar e ninguém comentar seus trabalhos é muito triste pra um desenhista. O meu pagamento não é a grana e sim a relação entre autor e leitor.
3 – Nos anos 90, você colaborou com um jornal de bairro, fale um pouco dessa experiência.
Foi em 98, no ZN Notícias, um ano após ter nascido o Arroz Integral. Foi muito importante publicar nesse jornal, porque me deu uma noção básica de como se trabalha na imprensa, prazos, temas, etc. Lá eu fazia tiras e charges políticas. Meu trabalho cresceu profissionalmente muito rápido por causa dessa experiência. Um ano depois fui pro Diário da Tarde, que era um jornal do Estado de Minas. Fiquei lá até 2000, também foi uma ótima experiência porque esse jornal era de grande circulação em Minas Gerais e não só numa área específica, como o ZN.
Minhas tiras passaram a ser lidas em todo Estado, então você senti uma responsabilidade maior, você cresce, vai amadurecendo. Conheci desenhistas profissionais como Ed, que desenha pra MAD, o Son Salvador chargista principal do Estado de Minas e do Diário da Tarde, que selecionava as tiras, o Eduardo, que desenhava o Batman pra DC, o Melado, e outros desenhistas que publicavam suas tiras comigo na sessão. Isso tudo me ajudou a crescer.
4 – E como foi a sua entrada no Diário da Tarde (jornal de Belo Horizonte)?
Um velho amigo desenhista, o Geraldir, me ligou e disse que o DT estava procurando novas tiras pra entrar no jornal, aí eu fui até a redação e falei direto com o Son Salvador, ele gostou das tiras do Arroz e passei a publicar. Mas era trabalhoso demais, porque não existia toda essa tecnologia da informática à minha disposição como o e-mail. Eu não tinha computador e Lan-House se multiplicou só agora no século XXI. Eu tinha que levar minhas tiras de ônibus até a redação porque enviar pelos correios era demorado eu não tinha condição de enviar pelo Sedex.
Como a série do Arroz Integral era bem jovem, eu tinha pouco material, então desenhava quase todo dia pra mandar pro jornal, que publicava no caderno de Cultura nos Domingos. Mas o esforço era válido, porque era um importante espaço pro meu trabalho. A página que era publicada as tiras era uma pagina inteira do jornal, do pé a cabeça, o leitor ficava tontim de tantos quadros. O mais legal é que só publicavam tiras nacionais. Com o tempo foram diminuindo os espaços. De pagina inteira, passou pra meia página, depois quatro tiras até acabarem com tudo. O Arroz Integral resistiu até o último dia. Depois o jornal saiu de circulação e só ficou o Estado de Minas, que já tinha o Nani fazendo tiras e o Son salvador nas charges. Daí eu conheci os fanzines e mergulhei de cabeça.
5 – Qual a diferença de publicar num jornal pequeno e em outro de maior circulação local?
Bão... Em termos de divulgação faz muita diferença, porque você está sendo lido por mais pessoas, abrange um publico maior, em termos de produção é quase a mesma coisa, porque todo jornal tem essa correria de pautas e tal... Mesmo ele sendo semanal, mensal ou diário, o que muda é o prazo de se fazer as coisas.
6 – Você desenvolve os personagens do "Arroz Integral", que ganhou revistas próprias em 2002, é desafiante lançar uma revista própria?
Putzgrila! Como é! Todo desenhista sabe dessa dificuldade, assim como todo cineasta, fotógrafo, ator, pintor, escritor, escultor... O BraZil ainda não valoriza seus artistas como deveria. É muito triste você ver trabalhos estrangeiros dominando nossa cultura, materiais chulos com capa dura e distribuição nacional, enquanto que o artista brasileiro tem que se aventurar nos espaços independentes que existe. Pagando tudo do bolso... Veja o caso de Flávio Colin, um verdadeiro artista que retratou o BraSil em seus traços, morreu sem o reconhecimento devido. Suas historias tinham que ser debatidas em sala de aula, deveriam estar nas prateleiras das principais livrarias, no Topo da Lista das editoras (assim como a série: A Caravela de Nilson). Merecia ter praças ou avenidas com seu nome ao invés de nomes de assassinos da ditadura ou de exploradores espanhóis e portugueses que nos tiraram tudo de material. O mesmo acontece com Nilson, com Henfil e com tantos outros que não tem ou não tiveram o devido valor. A minha revista só saiu porque tive a ajuda primordial de Wellington Srbek, editor e roteirista, que ama o quadrinho nacional autêntico, caso contrário, duvido muito que teria publicado uma revista naquela época. Agente enfrenta todo tipo de fronteira, é a distribuição, é o custo, é a vendagem é o próprio público. No BraZil infelizmente o hábito da leitura é ainda muito pequeno e dessa parcela que lê gibis, 80% preferem quadrinhos enlatados.
7 – Como foi sua exposição da Espanha?
O contato foi através dos fanzines, recebi um convite pra enviar meus zines do Arroz Integral. Rolou três anos seguidos. Teve muito brasileiro na parada. Não fui lá não, não tenho essa condição, vi o catálogo que me enviaram.
8 – Um personagem seu que chama bastante atenção é o "Zé Alguém", de onde veio a inspiração?
Do povo, da luta do povo. Há muito tempo que sinto falta de ler quadrinhos militantes, hoje é raríssimo, tem o Nilson fazendo, mas limitado dentro do sindicato, foi vetado da imprensa burguesa. Quadrinho com essa cara, original, que o autor defende de verdade uma causa e não se vende é muito difícil de ver. Sinto uma falta tremenda de ler Henfil e como já li praticamente tudo dele, fiquei carente dessas informações, desses quadrinhos jornalísticos. Mas ainda tem o Nilson desenhando, mesmo com acesso precário aos seus trabalhos eu acompanho tudo que ele faz. Por causa dessa carência que resolvi fazer humor militante, até porque não era pra cobrir somente minha carência, sei que tem muitos brasileiros sentindo essa falta. O BraZil está carente desse tipo de autor e os raros que tem não conseguem espaço na mídia marrom. Eu sempre quis fazer quadrinhos políticos, mas não sabia a fórmula.
Descobrir Henfil e Nilson foi a minha luz, eu não queria fazer essas charges de jornais que desenham um político e metem o pau nele e noutro dia fazem a mesma charge falando bem. Isso não era pra mim, não me sentiria bem fazendo isso porque sempre prezei pela integridade, pelo caráter humano. Você tem que decidir de qual lado está. Então fui fazendo outras coisas como o Arroz Integral, que estava mais próximo do meu universo, que eu vivia na época com minhas bandas de rock fracassadas. Eu não me simpatizo com a conduta política do nosso BraZil, nunca consegui ver a real Democracia funcionar, pra mim é mais um Democracídio, como diz Eduardo Marinho, porque estão matando nosso povo aos poucos, nos campos, nas manifestações, nas filas de hospitais, nas favelas e aglomerados, nas estradas, na exploração da mão-de-obra, nas escolas com esse ensino defasado, enfim... Dai quando descobri o socialismo me identifiquei e fui juntando as partes, descobri que fazer humor político não é só desenhar um político numa charge e descer a lenha, e sim fazer quadrinhos que expressem as vontades do povo, que retratem as dificuldades, os sonhos e os ideais da massa, isso é política.
Foi a partir dessa complexa transição que me encontrei dentro do humor de combate. Ainda estou em faze de aprendizagem, fazer humor militante não é fácil e existem mil barreiras pra quem o faz, jornal burguês nenhum vai publicar esses trabalhos, então chegar a um grande público é uma tarefa difícil que tento burlar todos os dias, por isso que digo que estou em fase de aprendizagem, porque quero pegar aquela sutileza de passar batido num grande jornal e levar a informação pro povo como Henfil fazia, isso até conseguir concretizar o projeto da minha própria revista bimestral que está em fase de construção. Pra fazer humor militante primeiro você tem que gostar, se identificar, tem que ser verdadeiro senão não sai nada. Até porque eu sempre fui do povo, nasci no meio da classe trabalhadora e desempregada, brinquei nos quintais, pulei corda, andei descalço, estudei em escola pública, sempre vivi como vive a maioria dos brasileiros, cheios de sonhos e vontades, mas sem condições reais pra realizá-las. A vida não me deu mordomias, comecei a trabalhar com doze anos, aos dezoito já era operário.
9 – Além de artista, você também leciona quadrinhos e graffit, há jovens talentos em BH? Fale mais sobre esse trabalho.
Sim, em todo território nacional temos excelentes artistas o que nos falta é o que venho falando, espaços e oportunidades. Aqui mesmo tem uma turma nova que é muito boa, só que depois que conhecem de verdade nosso mercadinho eles cascam fora, desistem de seguir em frente. Lembro-me que eu tinha uma turma de vinte alunos, no final do curso só um resolveu enfrentar as dificuldades, levou a sério e está desenhando até agora, conquistando seu espaço. O grande problema que encontro nas oficinas de quadrim é que o pessoal vem com uma impressão deque vão sair do curso e já publicar, que vão lançar revistas nas bancas e tal... Não conhecem o mercado ai depois do curso desencantam, estão despreparados psicologicamente, eu tento passar o espírito de luta, de resistência, mas são poucos que suportam a maioria broxa.
Sem contar que uma grande parte vem pra aprender mangá, super-heróis, coisas da cultura estrangeira. Ensinar nosso quadrinho fica mais difícil, é raro um aluno chegar dizendo: ''quero aprender cartum. "Quero desenhar igual ao Ziraldo". Não podemos julgá-los, cresceram lendo DC, Marvel, Disney, o que conhecem de mais brasileiro é Turma da Mônica, e essa precariedade de informação se deve ao nosso péssimo mercado editorial. As poucas revistas nacionais que foram lançadas até o momento passaram por muitas lutas e suas distribuições sempre foram precárias, de difícil acesso ao público. Enfrentar esses monstros enlatados não é nada fácil e tudo faz parte da indústria de dominação cultural. O buraco é mais embaixo, poucos param pra analisar. A manipulação cultural vem de fora, ela também vem enlatada. Desde os primórdios que somos explorados e dominados pelos países de primeiro mundo e essa chupação do nosso sangue acontece em toda área, não é só em nossas riquezas naturais, a dominação passa também pelos quadrinhos assim como, na moda, no cinema, na comida, na estética corporal, na arquitetura. Eles querem que façamos tudo no padrão deles e não no nosso.
Tudo que é usado e consumido aqui que seja deles, ou que tenha um dedo deles no meio. Pra você ver uma coisa, muitos desenhistas nossos trabalham pra essas editoras americanas desenhando Batman, Mulher Maravilha, Super-Homem e tal, e quando que você pegou uma revista dessas e viu lá a assinatura desses brasileiros? Nunca! Pra desenhar lá o cara tem que ter outro nome, um nome em inglês, senão não publica, não pode mostrar que foi um latino que desenhou, tem que parecer que foi um americano. Ta entendendo? Como diz Eduardo Galeano: ''Eles nos roubaram tudo, até o direito de sermos chamados americanos''. A Tevê é o maior canal que a indústria tem para fazer sua propaganda de comportamentos, difundir a bobalização e pra variar, o nosso povo aprendeu a amar televisão. Somos o quinto país do mundo que mais vende tevê. É principalmente pela tevê, que começa essa dominação cultural. A Globo, 5° maior emissora do mundo, que está ligada aos maiores lideres burgueses industriais, tem a missão de nos emburrar, de nos enlatar, de nos re-educar culturalmente.
O que devemos falar vestir e comer. Isso já vem desde sua fundação em 1965, quando foi criada para propagar a ideologia do estado ditatorial brasileiro de apoio ao governo Médici, colocando em suas transmissões seriados americanos, novelas (distração maior da classe média e do povo), mostrando o mundo das relações interpessoais isento das contradições sociais. Industrializando nossas mentes e nossas vidas. Até nossos índios estão bebendo coca-cola ao invés de água do rio, tão comendo Elma Chips e mastigando Chicletes. O nosso Cachorro Quente não se chama mais Cachorro Quente, agora é Hot Dog, é mais bUnito, culto mais moderno, mais bobalizado. Veja o caso desse filme ridículo chamado''Se eu fosse Você'', totalmente americanizado, dentro do programa de globalização e dominação cultural, foi sucesso de bilheteria, tanto que fizeram o segundo. A casa onde moram os personagens, nem muro tem, bem nos moldes das casas americanas. E os filmes: Olga, Zuzu Angel, Bicho de Sete Cabeça, Canudos, O Auto da Compadecida? Ninguém comenta ninguém vê.
A grande parte dos brasileiros sente vergonha de serem brasileiros devido a tanta informação deturpada que a mídia passa, querem vestir como se veste em Nova York, comer como se come na Itália, ter casas como se mostra nos filmes da Sessão da Tarde. Querem morar no exterior, mas por quê? Porque o capitalismo, junto com suas ferramentas de disseminação, mostra que somos um povo de terceira classe que não nos enquadramos nos padrões internacionais e ninguém quer ficar démodé né?Ai o povo dana a usar camiseta USA, falar Yes e consumir tudo de fora. A nossa mídia, que é a maior ferramenta para a invasão, deveria mostrar outro papel, o papel de como é honroso sermos brasileiros, de como nosso povo lutou no passado para manter a soberania deste país, de como nossos índios são belos, de como o cangaço, os sertanejos, os camponeses são importantes pra nossa cultura. Deveriam fortalecer a cultura popular, o Maracatu, o Congado, o sertão, as danças regionais, enfim... Todo brasileiro sabe da vida da Lady Gaga, do Michel Jackson, da Madona, do Papa, mas nada sabem de Tiradentes, de Zumbi, de Lampião, do Vlado, do Betinho, do Glauber Rocha, do Geraldo Vandré, do Pedro Munhoz, do Ariano suassuna, do Carlos Marighella, (...).
10 – Divulgue seus livros, mande a sua mensagem aos seus fãs.
Quero agradecer pelo espaço cedido, é muito importante ter um veículo como este para divulgar os artistas nacionais. Desejo força a todos do site e que não deixem essa bandeira abaixar. Quero pedir pra essa juventude, que é a continuação da nossa historia, que leem mais livros, quadrinhos brasileiros, que vejam o cinema brasileiro com outros olhos e não com olhos americanizados, que tenham orgulho de suas descendências, de serem brasileiros, de serem latinos, pois nosso povo, assim como todo o povo latino, é marcado por lutas. Essa história de resistência contra o imperialismo burguês não pode parar. Devemos formar cidadãos conscientes da importância de ser brasileiro, da importância de ser um ser humano capaz de rebelar-se contra qualquer governo que venha a nos prejudicar, se indignar por qualquer injustiça cometida. Que também seja capaz de chorar e se emocionar ao ver nos olhos de alguém a esperança, o orgulho e o espírito de ser BraSileiro!
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