Foto 1 - Ilka Oliva e o seu livro.
Foto 2 - Denisse Rowland (CC by-nc/2.0/) - Troço da fronteira entre os EUA e o México no desserto.
Foto 3 - Ilka Oliva.
Ao longo das próximas semanas o Diário Liberdade publicará pela primeira vez para o mundo lusófono o livro 'História de uma indocumentada, travessia no desserto de Sonora - Arizona', de Ilka Oliva Corado quem, aliás, acabou de incorporar-se na equipa de autoras e autores de opiniom neste portal informativo com o espaço 'Crónicas de uma inquilina'.
Ilka explica na sua obra a experiência de três dias de travessia no desserto para atravessar ilegalmente a fronteira do México aos Estados Unidos, onde atualmente reside ainda como indocumentada. Sobre isso, e sobre as situações que por volta disso acontecem, falamos com ela.
Diário Liberdade - Que te conduziu a abandonar o teu país para empreenderes uma viagem perigosa e ilegal aos Estados Unidos?
Ilka Oliva - A frustração. Uma depressão profunda. A minha vida pessoal era um caos, já tinha tido duas tentativas de suicídio e estava a caminho do terceiro quando decidi migrar.
Não migrei por anseios de luxos económicos, nunca acreditei no sonho americano. Nem sequer tinha imaginado viajar aos Estados Unidos de férias, muito menos viver cá. Na Guatemala trabalhava de maestra de Educação Física num dos colégios mais prestigiados, e estava a estudar piscologia na Universidade de San Carlos, mas o meu sonho era ser árbitra internacional de futebol.
Quando tomei a decisão de migrar, este país se me atravessou no caminho e foi a minha via de escape. Uma decisão que tomei um dia sem me parar a pensar duas vezes e da qual não me arrependo, e que me levou a preparar a minha viagem em um mês.
Eu estive a lutar com todas as forças do meu ser para conseguir o meu sonho, dei tudo até a última gota de suor, mas a Guatemala me negou a oportunidade por ser mulher. Está tão implantado o machismo e os estereótipos que ver a mulher 'em um mundo de homens' representa uma ofensa para quem acham que as mulheres devemos estar na casa lavando pratos e cuidando crianças. Nesse tempo na Federação de Futebol da Guatemala não estava pronta para ver uma mulher abrir as suas asas e voar. Devagar houve mudanças, mas o sistema e a sociedade patriarcal ainda não compreendem que os homens e as mulheres temos as mesmas capacidades e habilidades, é só eliminar os preconceitos e estereótipos para avançarmos como humanidade. Não existe o mundo de homens nem o de mulheres, mas sim o que conformamos todos os seres humanos. Quando vamos compreender?
O futebol é a paixão da minha vida. Chegou o momento em que me ofereceram cama em troca da categoria de árbitra internacional e foi quando desabei porque compreendi que não dependia do meu esforço nem da minha capacidade, mas do meu sexo. Renunciei imediatamente e emigrei sem saber para onde o vento me ia levar, fui folha seca.
Haverá a quem possa parecer exagerada a decisão de migrar por uma deceção, de um sonho. Mas há que viver uma paixão com todas as forças do ser para saber que é o motor que nos motiva a viver. A mim me cortaram as asas e assim emigrei, completamente abatida. Não tenho por que mentir, não é vitimização, é a minha realidade e foi o caminho que percorri.
DL - Quais são as provas pelas quais passaram durante a travessia?
IO - Muitas, e são impossíveis de enumerar. Desconcerto: o desconhecido provoca angústia e mais ao se tratar de uma travessia sem documentos. De repente há que sacar forças de onde não há para poder sobreviver a uma experiência assim tão traumática. Há que ter o sangue frio e deixar as emoções de lado ou estar completamente devastado para tomar a decisão de deixar a vida na tentativa. Isso me aconteceu a mim, que me dava igual morrer na fronteira. Jamais pensei que a iria sobreviver.
Em uma situação tão extrema um aprende a enfrentar o medo e a desafiar a morte. A ver morrer pessoas e não enlouquecer com o cheiro a sangue fresco e com a atrocidade da desumanidade. Um entra e sai do inferno constantemente nessa travessia. E igual na pós-fronteira.
A experiência não termina por aí, mas marca para o resto da nossa vida. Um aprende o verdadeiro significado da sobrevivência, do tempo, dos instantes. Estar frente à morte constantemente muda por completo a nossa visão das coisas. O que realmente vale a pena e a alegria. Quem sobrevive a fronteira superou uma prova de fogo e sangue e sabe que nada nem ninguém poderá jamais o abater, senão pôde a fronteira. É por ela própria nos ter feito invencíveis, mas isso é qualquer coisa de que um se inteira quando passa o tempo. No momento um é um farrapo, o estigma desaba-nos. É o tempo o que cura tudo.
DL - Sofreu qualquer ameaça dos coyotes?
IO - Claro. Há que saber que os coyotes ou polleros são bandas de tráfico de pessoas. Não se assustam na hora de amedrontoar e quebrantar a moral das suas vítimas. Porque afinal somos isso, e eles os vitimários. Somos apenas um objeto com o qual eles fazem negócios. Vivos valemos-lhes até para o tráfico de órgãos, mortos estorvamos menos e nos enterram em valas clandestinas ou nos deixam atirados às beiras dos rios, ou nos caminhos de ferro.
A ameaça é parte da estratégia de intimidação que usam as bandas de coyotes para submeter os migrantes em trânsito. Não soube de qualquer pessoa que atravessasse a fronteira sem ter sofrido intimidação dos coyotes. Não ficam apenas em palavras: da intimidação verbal passam imediatamente a violência física, com golpes, torturas e estupros, e desrespeitam a vida com assassinatos.
DL - Como agem as organizações de tráfico de imigrantes que atravessam a fronteira?
IO- Primeiro, temos que estar cientes em que essas bandas são conformadas pelas próprias autoridades mexicanas. O narco-estado que se vive no México desde faz já vários anos tem recrudescido os abusos a migrantes. Sequestros, estupros, desaparecimentos forçados e assassinatos vêm das mesmas autoridades que em mancomunagem com o crime organizado fazem dos migrantes em trânsito o seu melhor negócio. É que somos um negócio perfeito e suculento para eles.
Aí estão envolvidos consulados, dirigentes, agentes de migração, presidentes das câmaras municipais, ministérios públicos, exército e a própria sociedade civil. Não existe proteção alguma para os migrantes. As pessoas vêm o abuso e olham para o outro lado. Acusam-nos de ladrões, de infestar o México com a nossa presença. De ir roubar os seus empregos, de encher de violência o país. Acusam-nos de estupradores. Todo o infame é o que representamos os migrantes centro e sul-americanos para a sociedade mexicana. Por isso, quando nos matam não se alteram. É o próprio governo quem manipula as redes do tráfico de pessoas.
DL - Como trabalham as forças de segurança do México e dos Estados Unidos quando se trata de imigrantes ilegais tratando de atravessar a fronteira?
IO - Se atravessar México é um inferno por si próprio, a fronteira entre esse país e os Estados Unidos fulmina os migrantes. São tratados como assassinos em ambos os lados. A polícia mexicana que encontra migrantes na fronteira sequestra-os e pede resgate aos familiares nos Estados Unidos. Os que têm sorte são deportados para os seus países de origem, e os que não são entregues às organizações criminosas que possuim redes de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual ou laboral, e ainda para o tráfico de órgãos.
Muitas vezes assassinam-nos aí mesmo no desserto, e são essas ossamentas que se vão encontrando com os anos. Ou esses corpos em estado de descomposição que não conseguem reconhecer as organizações de Direitos Humanos, porque a polícia tirou os documentos de propósito para que os restos não sejam retornados para os seus países de origem.
A Patrulha de Fronteira realiza uma verdadeira caçada. Tem todo apoio do governo norte-americano. Insultam-nos, batem-nos, torturam-nos, estupram-nos, assassinam-nos e não há forma de os denunciar porque quando uma denúncia é apresentada perante as cortes norte-americanas, estas são denegadas. Não há forma de prová-las, embora estejam as provas de que eles assassinam migrantes e desrespeitam os Direitos Humanos. Os próprios agentes da Patrulha de Fronteira abusam sexualmente crianças, adolescentes e mulheres, aí na fronteira e nos centros de detenção, tudo fica gravado nas câmaras de vigilância e mesmo assim as denúncias não são tidas em conta.
Porque os migrantes no México e nos Estados Unidos somos invisíveis, a ralé de uma leva de párias que procuram comida e tecto, essa massa humana que não interessa nem aos governos do país de origem, de trânsito e de destino. Estamos sozinhos. E sozinhos morremos. Tanto as autoridades mexicanas como a Patrulha de Fronteira usa-nos e elimina-nos. Não há lei que nos proteja. Não há humanidade que nos respeite.
DL - Tu foste testemunha de uma situação de maus-tratos, falta de respeito e violação da dignidade humana?
IO - Gostava de dizer com todas as forças do meu coração que não fui testemunha, mas infelizmente fui, e essas imagens estão na minha memória e perseguir-me-ão até o dia que eu morrer. Abuso sexual por bandas criminosas em território mexicano e abuso sexual, golpes e assassinatos pela Patrulha de Fronteira em território norte-americano.
A degradação humana eu vivi-a na fronteira. Todos - dos coyotes, às autoridades mexicanas e norte-americanas - tratam-nos como desperdícios. É um verdadeiro calvário atrever-se a atravessar a fronteira. A maior parte das pessoas não sabem aquilo que lhes espera, porque quem consegue sobreviver na fronteira não conta, pois é vergonhoso, dói, é humillante e preferem guardá-lo no mais profundo da sua memória. Há quem imagina e mesmo assim a necessidade obriga-os a migrar. Há que ter muito claro que as migrações de centroamericanos aos Estados Unidos são forçadas. E daí começa a tragédia.
DL - Tu sofreste o trauma da travessia?
IO - Sofri. Por muitos anos não pude dormir mais do que três horas. Quando conseguia conciliar o sono, acordava com os pesadelos e os gritos, o som das amotos e das balas. Ensimesmei-me. Como consequência, tatejo, ainda não consigo falar com a normalidade de antes de atravessar a fronteira.
Afastei-me das pessoas e fechei-me. Sumi no álcool porque só ébria conseguia esquecer por instantes o que tinha vivido na fronteira. Subi de peso. Deixei de praticar desporto. Odiei a minha vida de desportista. Renunciei à alegria. A fronteira roubou-me as ilusões. Fez-me pedaços. Fujo das reuniões sociais, não suporto estar entre um grupo grande de pessoas, prefiro a solidão. E na Guatemala não era assim, sempre era a alma da festa. Não consigo dominar o falar em público, e na Guatemala era ao invés. Desconfio mais das pessoas.
DL - Qual foi o destino daqueles que, como tu, atravessaram a fronteira?
IO - Saímos dos nossos países de origem e não sabemos se vamos atravessar a fronteira ou vamos morrer no caminho. O destino é incerto. O destino é chegar a este país e trabalhar nos ofícios destinados para os indocumentados: limpar casas, cortar relva, trabalhar de sol a sol nos campos de cultivo, ser pedreiras, partir as costas em fábricas trabalhando até 19 horas por dia de segunda-feira a domingo. Não ter direitos laborais. Que desrespeitem com nós os Direitos Humanos. Que nos discriminem.
O destino? É morrer lentamente em um encerro que nos descrevem como o país dos sonhos. Um embuste neones e uma realidade de esgoto. Mas do outro lado a realidade nos países de origem mata de fome, então entendo por que a necessidade empreender uma travessia assim tão arriscada. Lá não é melhor do cá para nós os invisíveis.
DL - Por que escreveste o livro 'História de uma indocumentada, travessia no desserto de Sonora - Arizona'?
IO - Sou a protagonista principal, e não para ter as atenções postas em mim, mas porque assim me tocou, porque essa é a história da minha travessia.
A jornalista chilena Carolina Vásquez Araya, residente na Guatemala, teve muito a ver na minha decisão de o escrever. Faz anos que leio as colunas de opinião dela no Prensa Libre - um jornal guatemalteco - e sempre denuncia o tráfico de pessoas, os abusos sexuais que vivemos as crianças, adolescentes e mulheres nos nossos países de origem. A discriminação com que crescemos as crianças marginadas pelo sistema e a sociedade.
Ela é uma das poucas jornalistas que visibilizan o drama da migração forçada e aprofunda nas razões, uma mulher de uma humanidade admirável, mestra no sentido mais completo da palavra. Ela foi o motor que me impulsionou a me despir de tal maneira.
Lendo as colunas dela compreendi que não podia ficar com isto dentro, que o meu dever humano era dá-lo conhecer. Que se queria fazer parte da mudança não podia guardar isso tão devastador, e que precisava trazer à tona para outras pessoas conhecerem através da própria protagonista o que a fronteira entre o México e os Estados Unidos é.
Consegui escrevê-lo com todo o tipo de pormenores graças a que já o superei. Foram dez anos de estar a trabalhar nas minhas emoções, a abrir as feridas e as arejar para as deixar secar. Passei por desvelos, por renúncias, pelo alcoolismo, por depressões para voltar a renascer. A fronteira deixou-me estéril, de sonhos, de vida, e não foi um processo fácil lembrar o cheiro a sangue e não me desabar de novo.
Escrevi-o porque é a minha obriga humana, porque sou pós-fronteira, porque sou de milhares de invisíveis. Porque se não o dizemos nós os indocumentados, ninguém dizê-lo-á com integridade. É por isso que o escrevi, não para procurar fama nem dinheiro, nem aplausos. Escrevi-o porque quero fazer parte da mudança e para isso há que se envolver.
DL - Qual é a tua situação atual nos EUA? Como é a vida como um imigrante ilegal?
IO - Continuo a ser indocumentada tal como quando cheguei a 11 de novembro de 2003.
Trabalho nos mil ofícios como os milhões de indocumentados. Não tenho direitos laborais. Igual do que os milhões de invisíveis, podem deportar-me a qualquer dia. Igual do que eles, saio do apartamento que alugo com a minha irmã - mamãe, Evelyn - quem já fazia um ano por cá quando emigrei, embora ela emigrou com visado e não viveu a fronteira - e não sei se vou regressar porque a qualquer momento um polícia racista pode parar-me e enviar-me direta para a deportação. Aprende-se a viver com essa realidade cheia de sobressaltos. É parte do andar indocumentado neste país.
Por isso aprendi a desfrutar das pequenas coisas: os meus passeios de bicicleta, as minhas caminhadas pela reserva florestal, as vistas do lago Michigan, a brisa da primavera e as cores do outono, o branco inverno tão cheio de magia. São coisas que pára muitos parecem insignificantes mas que enchem a alma. Um aprende a viver com o que tem, que enfim é muito.
Um nunca se termina de afazer, ninguém quer estar dentro de uma prisão embora tenha neones e arranha-céus. Nunca se deixa de ser estrangeiro e sempre se retorna em saudade do país de origem. Aprende-se a digerir esta sobrevivência de fronteira e migração.
Este processo catártico da escritura e a poesia permitiu-me reverdescer. Aos poucos, as letras converteram-se na minha razão de ser, no ar que respiro, na minha convicção. São enfim a minha expressão mais leal.
Não posso ser egoísta e guardá-las só para mim criando borboletas de cores e céus sempre azuis: o meu dever é lançá-las ao vento para que outras pessoas saibam o que é a realidade do indocumentado que, a fim de contas, é muito similar em qualquer lugar do mundo.
DL - Agradecemos a atenção.
IO - Agradeço ao Diário Liberdade a entrevista. Obrigada por dar-me a oportunidade de expressar aos seus leitores a importância de que todos nos envolvamos na odisséia das migrações forçadas e fazermos parte da mudança. Nenhum ser humano é ilegal. Livre trânsito para todos. Obrigada por traduzir este livro ao português. Continuemos caminhando e façamos do mundo uma Pátria Grande.