Foto de Rob Mieremet - Dutch National Archives, The Hague, Fotocollectie Algemeen Nederlands Persbureau (ANEFO), 1945-1989 (CC BY-SA 3.0 LU)
Sua história é semelhante à de muitos garotos que sonham – e à de alguns poucos que conseguiram – se tornar jogadores de futebol.
Cruyff nasceu em uma família pobre dos arredores de Amsterdã. Seu pai tinha uma barraca em que vendia frutas e legumes, e sua mãe era faxineira do Ajax, principal clube de futebol da cidade. Graças ao emprego dela, o pequeno Jopie, talentoso nas peladas de rua, conseguiu entrar para a equipe de base do clube.
Mas não foi fácil para o garoto humilde da periferia. Seus pais não tinham dinheiro para comprar um par de chuteiras que pudesse usar nos treinos. Para jogar bola, ele improvisava calçando sapatos.
As coisas ficaram ainda mais difíceis quando, aos 12 anos, Cruyff perdeu seu pai. Ele teve que começar a trabalhar muito cedo. Arrumou um emprego no próprio Ajax, cuidando da grama, dos uniformes e limpando as chuteiras dos jogadores do time adulto. Pouco tempo depois, teve que largar os estudos.
O garoto alto e magro com técnica apurada e grande habilidade estreou aos 17 anos no time principal do Ajax, marcando um gol. Nos nove anos seguintes à sua estreia como profissional, Cruyff daria ao Ajax seis títulos da primeira divisão, três títulos de campeão europeu e um mundial.
Em 1973, Real Madri e Barcelona brigaram pela contratação do craque holandês. O Ajax queria negociá-lo com o primeiro, mas ele se rebelou e escolheu o segundo. O Real era – e ainda é – um dos maiores símbolos esportivos do unionismo e do fascismo espanhol, clube predileto do ditador Franco e da ultrarreacionária monarquia espanhola. Enquanto que o Barcelona, tal como o é hoje, foi um dos principais focos de resistência da língua catalã e da emancipação do país catalão.
O regime espanhol chegou a intervir na negociação do Barcelona com o clube holandês, para impedir que o astro ajudasse a elevar o ânimo da torcida (e da nação) catalã, já que não quis jogar em Madri.
Na sua primeira temporada no Camp Nou, Cruyff tirou o time da zona de rebaixamento e levou o Barcelona à conquista do campeonato depois de 14 anos – já que o Real Madri, simbolizando o fascismo e a monarquia, era beneficiado de todas as formas. Um dos marcos daquela conquista histórica foi a inesquecível goleada por 5 a 0 aplicada em pleno Santiago Bernabéu, com direito a um bonito gol do holandês. Esta partida não teve apenas uma importância futebolística: representou o início da queda do regime franquista.
No mesmo ano, 1974, a seleção holandesa desembarcava na Alemanha para a disputa da Copa do Mundo. O que se viu logo na primeira partida deixou todo o público estupefato. Onze jogadores de laranja movimentando-se por todo o campo, sem posição definida, correndo atrás da bola, tocando a bola sem parar, com velocidade e boa técnica, marcação pressão. Quando o adversário pegava na bola, todos os holandeses corriam em direção à linha do meio-campo para deixar os atacantes rivais impedidos. Esse era o “Carrossel Holandês”, a “Laranja Mecânica”. Surgia o “Futebol Total”, coisa que jamais alguém havia visto. E Cruyff era o coração daquele time, comandado fora de campo pelo maior treinador de todos os tempos, Rinus Michels, técnico de Cruyff no Ajax e também no Barcelona, que criou esse estilo de jogo.
Cada jogador, um operário. Todos jogando pela equipe. Não havia individualismo. De cada um, conforme sua capacidade, a cada um de acordo com a sua necessidade. A coletividade daquele time jogava como música. Assim era o estilo de jogo que revolucionou o futebol e deixou boquiaberto o público futebolístico.
No intervalo que separava cada partida da seleção holandesa, não havia a chamada “concentração”. Os atletas eram livres para sair, levar suas esposas, fumar e se divertir. Um ambiente liberal, semelhante ao que aconteceria no time do Corinthians alguns anos depois, com a “Democracia Corintiana” liderada por Sócrates e companhia.
A Holanda não foi campeã mundial por um detalhe. Chegou à final, mas o time já estava cansado fisicamente e enfrentava uma grande seleção como era a Alemanha Ocidental, capitaneada pelo defensor Franz Beckenbauer. Mas aquilo marcou toda a história do futebol mundial. Alguns dizem que existiu um futebol antes de 1974, e outro pós-1974.
Cruyff levou esse estilo de jogo para a Catalunha, quando treinou a equipe do Barcelona durante quase dez anos, implantando o futebol que encantou o mundo em 1974. O que Pep Guardiola faz hoje é fruto do trabalho de Cruyff, mas, mesmo que com todo o seu brilho, ainda fica atrás daquele carrossel holandês.
A história se repetiu na Copa do Mundo seguinte. Se em 1974 havia sido uma tragédia para os holandeses não terem conquistado o título, desta vez pode-se considerar que seu futebol era uma farsa. A Holanda foi vice-campeã novamente, perdendo para os anfitriões. Mas a “Laranja Mecânica” já não era mais a mesma. O estilo de jogo não chegava perto daquele apresentado quatro anos antes. E o coração do time já não estava mais presente.
Cruyff havia desistido de disputar o mundial por um trauma que sofreu após ele e sua família terem sido vítimas de criminosos em 1977. Talvez também como forma de protesto, já que a Argentina do general fascista Jorge Videla sediaria o mundial. Curiosamente, hoje, dia da morte de Cruyff, completam-se 40 anos do golpe militar que instituiu a ditadura na Argentina.
Cruyff se aposentou depois de voltar para a Holanda, no início dos anos 1980. Como treinador, além de ter dirigido o Barcelona e a seleção holandesa, Cruyff comandou a seleção da Catalunha, não reconhecida pela FIFA, mas que se destacou como mais uma referência pela independência do país.
Rinus Michels disse, certa vez: “O futebol é a coisa mais importante dentre as coisas menos importantes”. Cruyff foi um gênio do futebol. E um rebelde, para além do futebol.