A seguir, Weisbrot apresenta o relato sobre sua estadia na Venezuela em artigo publicado em 20 de março no The Guardian.
As imagens que forjam a realidade, o que dá à televisão, os vídeos e até às fotografias um poder com o qual podem penetrar profundamente na mente das pessoas, inclusive sem que elas se deem conta. Pensei que também eu era imune aos repetitivos retratos da Venezuela como Estado falido em meio a uma rebelião popular. Mas não estava preparado para o que vi em Caracas este mês: pouco da vida cotidiana parecia estar afetado pelos protestos, a normalidade que reina na maior parte da cidade. Também eu havia sido enganado pela imagética midiática.
Grandes meios têm noticiado que os pobres na Venezuela não se uniram aos protestos da oposição de direita, mas isso é um eufemismo: não é somente que os pobres se abstêm – em Caracas são quase todos, exceto poucas áreas como Altamira, onde pequenos grupos de manifestantes se metem em batalhas noturnas com as forças de segurança, lançam pedras e bombas incendiárias e fogem do gás lacrimogêneo.
Caminhando desde o bairro de classe trabalhadora, Sabana Grande, até o centro da cidade, não há sinais de que a Venezuela está a bordo de uma "crise" que requeira a intervenção da Organização dos Estados Americanos (OEA), apesar do que John Kerry diz. O metrô também funcionava muito bem, ainda que eu não pudesse descer na estação Altamira, onde os rebeldes haviam instalado sua base de operações, até sua retirada nesta semana.
Consegui ver as barricadas pela primeira vez em Los Palos Grandes, área de classe alta onde os manifestantes têm apoio popular e os vizinhos advertirão a qualquer um que tente remover as barricadas – uma tentativa arriscada (ao menos quatro pessoas aparentemente foram assassinadas a tiros por tantar fazer isso). Mas inclusive aqui nas barricadas, a vida era bastante normal, exceto por algum tráfego intenso. No fim de semana, o Parque del Este estava cheio de famílias e corredores suando em um calor de 32 graus – antes de Chávez, era preciso pagar para entrar; e os habitantes, segundo me disseram, estavam decepcionados porque era permitido aos menos afortunados a entrada gratuita. Os restaurantes seguem cheios à noite.
Viajar ajuda a verificar um pouco mais a realidade, e eu visitei Caracas principalmente para obter informações sobre a área econômica. Mas vim cético a respeito da história, difundida diariamente na mídia, de que o desabastecimento de produtos básicos era a razão para os protestos. Os que mais sofrem com a escassez são, obviamente, os pobres e a classe trabalhadora. Mas os habitantes de Los Palos Grandes e Altamira, onde vi verdadeiros protestos, têm empregados que fazem fila para o que necessitam e têm a renda e o espaço para acumular algumas ações.
Essas pessoas não estão sofrendo, estão vivendo muito bem. Sua renda aumentou desde que o governo de Chávez tomou o controle da indústria petrolífera há uma década. Inclusive têm um grande apoio do Governo: qualquer um que tenha um cartão de crédito (exceto os pobres e os milhões da classe trabalhadora) têm direito a $3.000 por ano, uma taxa de câmbio subsidiada. Depois, podem vender os dólares seis vezes mais caros do que pagaram, no qual soma-se um subsídio anual multimilionário em dólares para os privilegiados, e esses são ainda os que abastecem a base e as tropas da agitação.
A natureza de classe desta luta sempre foi crua e irrefutável, agora mais do que nunca. Caminhando entre as massas que foram às cerimônias pelo aniversário da morte de Chávez, em 5 de março, se via um mar de dezenas de milhares de venezuelanos da classe trabalhadora. Não havia roupas caras ou sapatos de $3.000. Que contraste com as massas descontentes de Los Palos Grandes, que tinham jeeps Grand Cherokee de $40.000 portando o slogan do momento: SOS Venezuela.
Quando se refere à Venezuela, John Kerry sabe em qual lado da luta de classes está. Na semana passada, justamente quando eu ia embora, o secretário de Estado dos Estados Unidos duplicou sua descarga de retórica contra o Governo, acusando o presidente Nicolás Maduro de fomentar um "campanha de terror contra seu próprio povo". Kerry também ameaçou invocar a Carta Democrática Interamericana da OEA contra a Venezuela, assim como a implicar sanções.
Fazer alarde sobre a Carta Democrática contra a Venezuela é quase como ameaçar Vladimir Putin com um voto da ONU sobre a secessão da Crimeia. Quem sabe Kerry não se deu conta, mas apenas alguns dias antes de suas ameaças, a OEA votou uma resolução que Washington introduziu contra a Venezuela e deu meia-volta, declarando a "solidariedade" do organismo regional ao governo de Maduro. Vinte e nove países a aprovaram e só os governos de direita de Panamá e Canadá se aliaram aos Estados Unidos contra ela.
O artigo 21 da Carta Democrática da OEA se aplica ante a "interrupção inconstitucional da ordem democrática de um Estado membro" (como o golpe militar de 2009 em Honduras, o qual Washington ajudou a legitimar, ou o golpe militar de 2002 na Venezuela, que teve ainda mais colaboração do Governo estadunidense). Devido a este voto recente, a OEA poderia invocar a Carta Democrática com mais propriedade contra o Governo dos Estados Unidos, pelas mortes que causam seus drones a cidadãos estadunidenses sem julgamento, do que contra a Venezuela.
A retórica de "campanha de terror" de Kerry está igualmente divorciada da realidade e, como era de se esperar, provocou uma resposta equivalente do chanceler da Venezuela, que o chamou de "assassino". Esta é a verdade sobre as acusações de Kerry: desde quando começaram os protestos na Venezuela, mais pessoas foram mortas nas mãos dos manifestantes do que pelas forças de segurança. De acordo com as mortes informadas pelo CEPR (Centro de Invstigación em Economía y Política) durante o último mês, além das pessoas assassinadas por tentar remover as barricadas colocadas pelos manifestantes, pelo menos sete aparentemente foram mortas devido às obstruções criadas pelos manifestantes – incluindo um motociclista que foi degolado por um arame farpado que cruzava a rua – e cinco oficiais da Guarda Nacional foram assassinados.
A respeito da violência por parte dos corpos de segurança, alegadamente três pessoas poderiam ter sido assassinadas pela Guarda Nacional ou outras forças de segurança – incluindo dois manifestantes e um ativista que apoiava o governo. Algumas pessoas acusam o Governo por outras três mortes de civis armados; em um país com uma média de mais de 65 homicídios por dia, é completamente possível que essas pessoas atuassem por conta própria.
Um total de 21 membros das forças de segurança estão presos por supostos abusos, incluindo por alguns dos assassinatos. Isso não é uma "campanha de terror".
Ao mesmo tempo, é difícil encontrar uma denúncia séria sobre a violência opositora entre os mais importantes líderes da oposição. Segundo pesquisas, os protestos são repudiados em grande medida na Venezuela, ainda que sejam melhor vistos quando promovidos como "protestos pacíficos" por gente como Kerry. As pesquisas também sugerem que a maioria dos venezuelanos vê esses distúrbios como eles são: uma tentativa de derrubar um governo eleito.
A política interna da postura de Kerry é bastante simples. Por um lado, tem o lobby cubano-americano da direita da Florida e seus aliados neoconservadores gritando a favor do derrocamento. À esquerda da extrema-direita, bom, não há nada. A esta, para a Casa Branca não importa nem um pouco a América Latina e não há consequências eleitorais para fazer que a maioria dos governos do hemisfério se irrite com Washington.
Talvez Kerry pense que a economia da Venezuela entrará em colapso e que isso levará alguns venezuelanos não ricos às ruas contra o Governo. Mas a situação econômica, na realidade, está se estabilizando – a inflação mensal baixou em fevereiro e o dólar do mercado paralelo tem baixado drasticamente ante às notícias de que o governo está introduzindo uma nova taxa de câmbio baseada no mercado. Os bônus soberanos da Venezuela tiveram um rendimento de 11,5% desde 11 de fevereiro (o dia em que começaram os protestos) a 13 de março, o mais alto rendimento segundo o índice de bônus de mercados emergentes da Blomberg. A escassez provavelmente baixará nas próximas semanas e meses.
Obviamente, esse é exatamente o principal problema da oposição: a próxima eleição será dentro de um ano e meio e, para essa data, a escassez econômica e a inflação que tem aumentado tanto nos últimos 15 meses terão aliviado. Nesse sentido, a oposição possivelmente perderá as eleições legislativas, assim como tem perdido a cada eleição nos últimos 15 anos. Mas sua atual estratégia inssurrecional não está ajudando a sua própria causa: parece que tem dividido a oposição e unido os chavistas.
O único lugar onde a oposição parece estar ganhando amplo apoio é em Washington.
* Mark Weisbrot é economista, co-diretor do Centre for Economic and Policy Research, em Washington, e presidente da ONG Just Foreign Policy.